À minha frente a folha branca. Como uma boca informe, escancarada, num riso provocador e maldoso.
Não sei o que escrever. Por cansaço, talvez. E, ela, a folha branca à minha frente, intacta, quieta, num adormecimento exasperante, como um lagarto preguiçoso, enlaguescido, ao sol. Lagarto que não quero branco, como a folha lisa de papel, que me provoca e me faz sentir pequenina, desajeitada, incapaz. Um lagarto que quero a cheirar a terra húmida, a líquenes, a musgo. E verde, como a relva, os ramos tenros das árvores, a luz alegre da esperança.
O meu pai tinha uns olhos verdes, lindos, que os óculos esbatiam e que mudavam de cor, não sei se conforme a maior ou menor intensidade da luz, se conforme o seu estado de espírito ou se, porque eram, simplesmente, assim. Às vezes, pareciam matizados de castanho dourado a transbordar doçura; outras vezes, eram de um castanho tão claro e transparente que pareciam âmbar e desprendia-se deles a transparência de uma quietude reconfortante e sábia; mas é na sua cintilação verde, límpida e aveludada, como as folhas delicadas das árvores, nas madrugadas claras e macias, na primavera, que os recordo. Luzeiros de sabedoria, de serenidade e de atenção.
Uma tarde, perguntei-lhe de que cor eram os seus olhos. Meio-divertido, meio-surpreendido com a pergunta, disse-me que os seus olhos eram da cor que eu os via, como, aliás, tudo à minha volta. Disse-me que, pela força das minhas emoções, com a minha alegria luminosa e radiante, com a minha tristeza sombria e gelada, assim eu coloria ou escurecia cada um dos meus dias. Era como se, ao projectar-me em tudo ao meu redor, eu tivesse, sem saber, o poder de recriar o mundo, embelezando-o ou desfigurando-o, o poder supremo de pintar a minha vida da cor que eu escolhesse, da cor que eu mais gostasse! Seria eu que daria claridade ou escuridão à minha vida. Nesse momento, na minha inocência, senti-me mais inteira do que nunca, indivisa, livre, poderosa!
E, nessa noite, adormeci feliz, cheia de esperança num mundo que eu iria pintar de de azul, verde, branco e amarelo. E de todas as outras mil cores possíveis!
Cresci e, com o passar implacável do tempo, já me foram dados viver dias de negrume e de tristeza, pintados de cinzento e de luto, com cheiro a lágrimas e a perda, num mundo mosqueado de luz e de sombra, de riso e de mágoa.
A folha, à minha frente, já não é branca. Está pontilhada de azul. São as palavras azuis que, num sobressalto, semeei, que se juntaram e formaram frases. Com mais ou menos sentido. Também não sei, porque o perdi, onde está o lagarto preguiçoso, que eu queria verde, a cheirar a terra húmida, a líquenes e a musgo e que enlanguescia, preguiçosamente, ao sol...
E, agora que as palavras, que lancei na folha, correm, saltam e brincam, à solta, manchando-a, transformando-a, dando-lhe vida e cor, quase tenho saudades da sua brancura inicial, lisa, perfeita, intacta...
NOTA: Há, na MEMÓRIA, uma violência difusa, dolente mas ferina, que se acoita, calada e sonsa, no infinito desesperante da lonjura, na pungência revolvida da saudade...
MC
2 comentários:
Fantástica, esta metáfora da angústia da folha em branco! Como que sustém, no momento inicial, as memórias gratas e dolorosas!
Belíssima, esta forma pedagógica de veicular a importância e o valor do ser humano no universo de que faz parte! Como que purifica a angústia numa catarse libertadora! E o processo dinâmico que estrutura e atravessa a escrita conduz o sujeito da escrita a uma infância de sonho, em que corre,e salta e brinca, como as palavras saídas do dicionário e da gramática da angústia que o habita.
Gostei muito, querida amiga.
Um pedaço maravilhoso de escrita , Zé, a propósito da minha folha em branco. Como tudo o que o Zé, um Poeta brilhante, de mão cheia, escreve! Um comentário lindo, poético, profundo mas de uma delicadeza de cetim que me enriquece, motiva-me e deixa aquele travo bom, gostoso de ser lida e compreendida. Obrigada, querido Amigo!
Enviar um comentário