segunda-feira, 5 de março de 2012

O gato amarelo

O gato amarelo dorme, no muro do jardim, por onde trepam roseiras que se debruçam, curiosas, para o quintal da vizinha. Aqui e ali, já florescem, numa languidez de desmaio libidinoso, algumas rosas claras, esmaecidas. Muito perto, exibe-se, esplendorosa, a magnólia rosada, num turbilhão incandescente de flores macias e acetinadas. Um pouco adiante, o pequeno maciço de mimosas abre-se, numa explosão tumultuada de flores douradas a exalar um perfume atrevido, ligeiramente áspero e quente, a lembrar, neste Inverno brando, a ardência do campo, numa Primavera antecipada e luminosa. O gato dorme, numa quietude amodorrada e mansa. E o pêlo farto e macio, de um amarelo suave a lembrar o caramelo leve e doce da minha infância, arrecada, guloso, numa orgia de reflexos de ouro, a luz do sol da manhã , que o aquece e lhe embala os sonhos.
De felino belo, independente, livre.

O gato amarelo não é meu, nem é de ninguém. Mas é minha, a bata amarela que visto quando, por momentos, me atrevo a tentar aquecer e adormentar a dor, o medo, a solidão do outro, dos outros. Com um sorriso, com uma palavra, com o silêncio... Mais, com o silêncio.
Em vão. Eu sei...

Há uns dias, no hospital, ajudei uma velhinha mirrada, a pele crespa, seca e amarelada como um papel gasto e enrugado,a sentar-se na cama. Não foi tarefa fácil, devido aos tubos, para onde escorriam fluídos viscosos e escuros, vazados para sacos já meio-cheios, pousados no chão. Cheirava vagamente a sangue apodrecido, a decadência e a uma amargura sombria, depressiva, quase palpável.
Quando me tentei desprender dela, agarrou-se mais a mim e disse-me muito baixinho: “Cheira tão bem, minha filha! Eu cheiro mal. Cheiro a doença e a estes líquidos negros, purulentos, que saem de mim. Não sei de onde vem tanta desgraça, tanta doença. Porquê tanto tempo...?”
Olhar ensombrado.
Coração aceso, no desacerto do peito.
Com o corpo esquálido, quebradiço e frágil, nos braços, compreendi que, o que a fazia prender-se a mim, não era a frescura doce e envolvente do meu perfume, mas a minha aproximação, o toque morno e macio de humanidade suavizando, por momentos, a sua velhice doente, solitária e fria.
Coração inquieto, no desconcerto dos dias.

Com duas gotas do meu perfume, já o disse, sinto-me sumptuosa! Hoje não. Hoje senti-me cansada; senti-me grata; tive medo.
Senti-me cansada da miséria humana, senti-me cansada da tenebrosa solidão que, como um abutre negro, espera pacientemente o desatar dos nós da vida; senti-me cansada da sordidez da indiferença que, como um cavalo doido, à solta, num galope desenfreado, destrói , implacável, afectos e compaixão, senti-me cansada do cansaço, do nojo, da ingratidão, do aborrecimento que vejo, que sinto...;
Senti-me grata pelo amor, pelas mãos, pelos sorrisos, pelas palavras e também pelas patinhas felpudas que me abraçam e me aquecem e afagam a alma;
Tive medo da imprevisibilidade da vida.

O gato amarelo de pêlo farto e macio, de um amarelo suave a lembrar o caramelo leve e doce da minha infância, já não dorme e não sonha no muro do jardim, enfeitado de roseiras que trepam, atrevidas e curiosas, e onde já florescem algumas rosas, que desmaiam voluptuosas, lascivas, na cascata refulgente do sol da manhã.
Imagino o gato, mancha amarela a brilhar na claridade dourada, num outro jardim qualquer, com cheiro a erva fresca, rasteira, humedecida, a brincar sozinho, mas “como se fosse na cama”, uma brincadeira muito sua, ou a lamber, deliciado e vagarosamente, num consolo muito seu, uma patinha amarela ou, talvez sentado ao sol, a observar, sobranceiro e livre, o que o rodeia com os seus olhos grandes, luminosos, de um verde translúcido, com frinchas amarelas...
Belos, esquivos, impenetráveis...


NOTA: Há na doença, uma violência febril marcada de delírios, suores e de soluços de dor; há uma violência feroz na agonia lenta, silenciosa e aflita, da resignação, tão calada e plangente, que parece coisa de santo, ou um alumbramento por Deus, mas que, eu acredito, ser mais desesperança, desistência, entrega desesperada, sem remédio, apesar do agarramento instintivo, apaixonado, à vida; há na velhice solitária, uma violência angustiada, feita de revolta amordaçada, de depressão melancólica, temperada com o amargor de lágrimas amassadas no negrume gelado dos dias...

MC

1 comentário:

José Almeida da Silva disse...

Excelente, esta metáfora da degração! Do gato amarelo e das pessoas apoiada pelo ser humano de bata amarela. Quanta sensibilidade e quanta preocupação com a fragilidade humana!

É assim o percurso do homem a mostrar a sua efemeridade, atravessada pelo sofrimento e pela morte. Vale-lhe este apoio desinteressado com calor humano e muito afeto.

Gostei muito. Parabéns.