quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Hoje, ontem... Luz e sombra.

O dia amanheceu radioso, quente e sereno. As árvores frondosas e vestidas de verde de mil matizes parecem coroadas por uma aura branca e dourada, como um halo de santo. No jardim, brilha a relva macia, ainda salpicada, aqui e ali, de pérolas líquidas de orvalho, ardem flores, num esbanjamento de cor, chilreiam pássaros, numa amálgama de pipilares dispersos e, longínquo, ouve-se o suave murmúrio do mar. 
É a voz e o feitiço de uma manhã, ainda esplendorosa, de Verão.

Na minha cabeça, misturam-se pensamentos e recordações, coisas que tenho de fazer durante o dia e lembranças do que já passou e que eu pensava já ter esquecido. Não encontrei ainda uma ordem lógica nesta mistura de assuntos de hoje e de memórias de ontem. Deve ser apenas um saltitante, distraído divagar...

Será a isto que chamam velhice? Misturar umas coisas com as outras? Umas mais próximas e urgentes, com outras perdidas na lonjura dos anos? Assim, como se uma porta se abrisse e, de repente, se abrisse outra e outra ainda? Porque será que, com o correr do tempo, a mente não se aquieta e o coração não se tranquiliza?

Não que eu seja velha! Não, velha não sou! Ainda! Mas, “entardecida”, serei. Antiga, não quero ser! Nunca!
Gosto de pensar a velhice com ruas infindáveis, que se prolonguem infinitamente e onde se abram portas incontáveis, num caminho de escuridão, que vou desbravando, e também de luz que me envolva e aqueça...
Basta uma palavra, uma risada, um fiapo de som de uma voz, uns acordes de uma melodia, um toque, uma textura, um sabor, um cheiro e, como uma rajada de vento norte, abre-se uma porta, e outra, e outra ainda, em recantos de sombra, onde se aninham recordações. Umas são luz, amor, oração. Outras são traição, mágoa, desengano. E, com elas, com as memórias, sempre, a saudade!
Esse, é o nosso fardo!

Todos carregamos connosco o passado, esse fardo cheio das nossas lembranças, das nossas perdas e das voltas e reviravoltas da vida e tanto maior e mais pesado, quantos mais anos tivérmos de o transportar. Cada um carrega o seu, até que surja a fatídica curva estreita, no caminho.

Se calhar, o que mais pesa, não é o fardo, em si, mas o que sofremos, o que trabalhamos, o que choramos, o que renunciamos, para o encher. Porque, pesadas são as lágrimas, as desilusões, os sonhos infatigavelmente adiados ou, já mortos.
Mas sei que as minhas alegrias, o amor que fui capaz de dar, o carinho que recebi, a bondade que me amparou, o que, de positivo, construí, tornam este fardo, que carrego, mais leve e delicado.

Contudo, no seu infinito jogo de luz e de sombra, a vida é uma dádiva preciosa, uma constante e surpreendente descoberta, um espantoso, comovente milagre!

 Assim sendo:

Give me my robe, put on my crown; I have Immortal longings in me”.
William Shakespeare

Não sei porque escrevi este texto, onde dei comigo debruçada sobre o Tempo esquivo, a realidade e, talvez, a ilusão, e onde evoco apegos e renúncias que julgava imobilizados no Passado.
Ou, talvez saiba: hoje é o dia dos meus anos.

Mas, apesar de tudo:

 É bom envelhecer!

Sentir cair o tempo,
magro fio de areia,
numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens
abraçados!...

As árvores
balançam novos ramos!...

E o fio de areia
a cair, a cair, a cair...

Saúl Dias, in "Essência"

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