O Homem cansou-se e partiu.
O seu Espírito voa como folha leve, silenciosa e livre.
Ficam as palavras ritmadas, transparentes, belíssimas,
embaladas nos seus vagares poéticos.
O Poeta, jardineiro incansável, eternizou-se no jardim, de
mil cores, da Poesia!
Fica a saudade reverente e muda.
Descanse em Paz, Poeta!
Creio nas palavras
Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura
Aqui
no meu reduto
entre ramos de ar
entre a cintilante indolência da água
creio no que nos une
em ondas vagas
apaixonadamente lentas
Aqui
eu pertenço
ao centro da nudez
como uma gota de água
ao rés do solo
na sua imediata e nua felicidade
António Ramos Rosa
Poema de um funcionário cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em
frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.
António Ramos Rosa, O Grito Claro, 1958
Uma voz que continua viva e, neste poema, a dar voz a todos
os funcionários cansados, cada vez mais sós, mais apagados, mais perdidos no
negrume denso do seu cansaço.
MC
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