terça-feira, 24 de setembro de 2013

Uma singela homenagem ao Poeta António Ramos Rosa.

O Homem cansou-se e partiu.
O seu Espírito voa como folha leve, silenciosa e livre.
Ficam as palavras ritmadas, transparentes, belíssimas, embaladas nos seus vagares poéticos.
O Poeta, jardineiro incansável, eternizou-se no jardim, de mil cores, da Poesia!
Fica a saudade reverente e muda.

Descanse em Paz, Poeta!


Creio nas palavras

Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura

Aqui
no meu reduto
entre ramos de ar
entre a cintilante indolência da água
creio no que nos une
em ondas vagas
apaixonadamente lentas

Aqui
eu pertenço
ao centro da nudez
como uma gota de água
ao rés do solo
na sua imediata e nua felicidade

António Ramos Rosa


Poema de um funcionário cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo

as casas engolem-nos

sumimo-nos

estou num quarto só num quarto só

com os sonhos trocados

com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado

um funcionário triste

a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito

a minha alma não dança com os números

tento escondê-la envergonhado

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado

Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas

flor rapariga amigo menino

irmão beijo namorada

mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho

palavras soterradas na prisão da minha vida

isto todas as noites do mundo numa só noite comprida

num quarto só.

 António Ramos Rosa, O Grito Claro, 1958


 Uma voz que continua viva e, neste poema, a dar voz a todos os funcionários cansados, cada vez mais sós, mais apagados, mais perdidos no negrume denso do seu cansaço.

MC

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