segunda-feira, 10 de março de 2008

A "minha " África ... Parte II

África do andar lento e requebrado das negras, corpos sinuosos, indolentes, envoltos em panos coloridos, artisticamente traçados, carregando com naturalidade e alegria os filhos que criam livremente, sem pressas e sem angústia, confiantes na força de uma Natureza tantas vezes caprichosa e nem sempre compassiva, mas que respeitam e amam !

Mulheres que aceitam, submissas, o pesado fardo de viver, bebem aguardente de cana, que destilam em alambiques caseiros e saboreiam, vagarosamente, gostosamente, o tabaco ordinário e forte, que fumam com a ponta acesa dentro da boca .

África da gente simples, alegre, dedicada, gente de pele negra mas onde pulsam corações lindos, puros e cristalinos, que enfeitaram, parte da minha vida, de sorrisos, de afecto e de luz ! E, todos e muitos são, permanecem nítidos, vivos na minha memória!
O Faustino, religioso convicto, a quem eu dava "santinhos" para me deixar comer as batatas estaladiças que ele ía, incessantemente, fritando para o jantar; a Averina, a nossa lavadeira, que adorava o chá da manhã e dizia que, quando eu fosse "grande", ficaria comigo para cuidar de mim e dos meus filhos; o Chipeco que me conhecia desde o berço e sempre que eu, já universitária, viajava até casa, em férias, ía visitar-me, abraçava-me, dizia que eu estava linda mas magrinha e, talvez por isso, oferecia-me, invariavelmente, ovos das galinhas que a mulher criava, na sanzala e um pão de forma branco, macio e fofo, com sabor a ternura; o Mussarilo, que adorava o meu pai, porque ele ajudava-o, muitas vezes, sobretudo, economicamente, e que insistia, teimosamente, em lavar-lhe o carro, todos os dias, e poli-lo até parecer um espelho ! O meu pai comovia-se e ficava um bocadinho embaraçado, mas sabia que essa era uma maneira delicada e, talvez a única que, na sua simplicidade, ele tinha, para lhe dizer quanto o estimava e lhe estava grato !

África dos grandes espaços abertos, imensos, impressão de infinito que nos conduz muito para além do trivial e do medíocre, dando-nos da vida e do universo que nós somos, perspectivas novas, mais amplas, mais humanas como se ali, o pensamento e o mundo adquirissem dimensões diferentes, maiores e mais profundas .

Estive, pela última vez, na "minha" África há muitos anos, tantos, que não os quero contar, poucos dias antes de partir rumo a uma Europa bem mais sofisticada, fria e cinzenta .

Nesse dia, frente a mim, resplandecia um pouco da África exuberante e misteriosa que amei apaixonadamente e que, para sempre, retenho na minha memória, nos meus sentidos, nas minhas veias, como parte integrante de mim, como uma marca de fogo, indelével ! E, essa terra vermelha, de contrastes vivos e bem marcados, que ainda vejo e guardo na minha alma, permanece bela e intacta, depurada de todo o Mal, pelo filtro mágico da distância e da nostalgia !

Contudo, não é sem espanto e mágoa que, em momentos como este, me vou dando conta do muito que já esqueci. Pedaços de vida que já não são meus, perdidos na névoa de um Passado, aqui e ali, já morto, porque, aqui e ali, já desvanecido pela erosão implacável do Tempo !
E, nas clareiras que os anos foram abrindo na minha memória, ergue-se, solitária e dorida, a Cruz negra da Saudade e florescem, cansadas, estranhas violetas, sem viço e sem perfume !

Naquele dia, há muitos anos, tantos, que não os quero contar, estendia-se frente a mim um pedaço da "minha" África, num deslumbramento de cascatas, vegetação e árvores altas, numa sinfonia de luz, de sons sussurrantes e de verdes de mil matizes, a mais bela e majestosa catedral, para o mais fantástico Te Deum.

Sem pressas, sem dramatismos, encerrou-se, então, suavemente mas para sempre, um ciclo precioso da minha vida. Foi o ponto final de uma Infância e Juventude sem história, porque dias felizes não têm história, vividos em Cinemascope e em Technicolor, porque tudo em África é, naturalmente, grande, colorido, luminoso !

Ali, há muitos anos, tantos, que não os quero contar, naquela hora singular, feita de encantamento e de lágrimas, a minha alma rasgou-se numa prece sentida, que era já um infinito adeus:"Domine, miserere nobis ! Domine, miserere me!"




PS- Dedico este post sobre a África que conheci, a todas as pessoas que nasceram e/ou viveram em Angola, a amaram como eu a amei, não a esqueceram como eu nunca a esqueci e jamais esquecerei ! Porque Angola e o seu povo serão sempre parte de mim !


M.C.

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