segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

De Profundis: Anorexia e pétalas de rosa

Estou confusa! Isto parece ser um velório! Isto é um velório! Há muitas rosas brancas, orquídeas, círios, uma Cruz enorme e uma urna a transbordar de seda e tule brancos! Cheira a velas, a flores e a lágrimas.
Não sei porque estou aqui, neste velório.
Comigo, estão muitos colegas meus e muitos professores. A minha professora de Português, a Drª Maria Emília, chora muito. No entanto, estão todos tão entregues a si próprios, que não me vêem, nem me ouvem!

O que estará a fazer aqui, o meu irmão? Meu Deus, como chora! Estou a seu lado, abraço-o, passo-lhe a mão pelo cabelo loiro e macio mas, ele continua sentado no banco duro, de madeira, a cabeça apoiada nas mãos e chora baixinho.
Deve ter sido alguém da Escola que morreu! Por isso, estou aqui! Mas, quem teria morrido? Perante o choro, tão sentido, do meu irmão, lembrei-me da Francisca, a namorada que ele adora mas, para meu espanto, ela acabou de entrar e abraça-o, com infinito cuidado, como se ele estivesse muito doente ou, como se, subitamente, se tivesse tornado delicado e frágil, como uma peça preciosa de cristal.

Ali, ao canto está o João, o rapaz por quem me apaixonei perdidamente, com o encantamento do primeiro amor e a insegurança e o lirismo dos meus dezasseis anos!
Um dia, na cantina, vi-o quase a desfazer-se em pranto, por ter tido uma negativa muito baixa, a Matemática. Aproximei-me dele e tentei desdramatizar aquele erro de percurso e dar-lhe coragem para não deixar que um pai, muito severo e extremamente exigente, o desmoralizasse!
Quando uns colegas nossos, nos viram juntos, meteram-se com ele e disseram-lhe, a rir, que eu era perfeita, para ser sua namorada! A sua gargalhada escarninha, o olhar meio enjoado, meio piedoso que me lançou e o “Não!”, que lhe escapou, quase gritado, rápido, dos lábios, envergonharam-me terrivelmente e magoaram-me profundamente!

Nessa noite, despi-me e olhei-me, criticamente, ao espelho. Angustiada, tive de admitir que era, de facto, uma rapariga desinteressante e nada bonita! A minha cara era muito redonda, com bochechas balofas e luzidias. Os meus braços eram fortes, muito roliços e as minhas ancas e pernas pareceram-me muito volumosas, flácidas, feias! Não tinha sequer cintura mas, um rolo carnudo, enrolava-se, à minha volta, como se fosse um cinto e começava a ter uma barriguinha que tremelicava de gordura!

Eu era, na verdade e para meu infinito desgosto, muito diferente das outras raparigas, bonitas, soltas, esguias, minhas amigas e colegas da escola, que tinham sucesso com os rapazes.

Já estava habituada a que me dissessem que estava a ficar demasiado rechonchuda, até a minha mãe me pedia que não comesse tantos doces e, embora, não gostasse que me falassem na minha imagem corporal, nunca me tinha preocupado tanto, nem nunca me tinha sentido tão infeliz, como nesse dia!

Decidi, nesse momento, sozinha, no meu quarto, fazer uma dieta a sério!

Comecei a beber muita água, para enganar o estômago e acalmar a ânsia de comer! Comecei a cortar o pequeno almoço, o lanche e a não tocar nos farináceos, nem nas gorduras. Só comia sopas batidas, cozidos, grelhados, iogurtes magros, alimentos dietéticos e alguma fruta, essencialmente, maçãs e ananás. Tudo mastigado vagarosamente, cuidadosamente!
Depois, ao almoço, comecei a “ter de ficar na escola”. O mais difícil, foi, realmente, arranjar muitas e variadas desculpas para evitar as refeições em família. Punham-me à frente, tudo o que eu mais gostava e os olhos de lince da minha mãe seguiam todos os meus movimentos à mesa! Por isso, muitas, muitas vezes, fui a festas e jantei com amigas que faziam anos...
Fazia muito exercício físico, às vezes, quase até à exaustão! Agora, já não posso...

Em meses, tinha perdido muito peso, continuo a perder peso mas, nunca deixei de me sentir pesada, inchada, enorme!

A comida repugna-me! Ao princípio, ainda ía comendo, depois, fingia que comia e escondia o que podia, nos bolsos ou, no lenço, quando ninguém estava a ver, para depois, deitar fora. Tornei-me hábil e manhosa!
Tomava medicamentos para não engordar, que me davam forças e energia mas, como não me ajudavam a emagrecer tanto quanto desejava, recorria, como recorro ainda, aos laxantes. Às vezes, como então, tenho uma vontade louca de comer este ou aquele petisco, este ou aquele bolo mas, controlo-me e bebo água.

Agrada-me este controlo que tenho sobre mim e sabe-me bem a abstinência a que me forço! Gosto de me sentir limpa e vazia por dentro!

Estudava muito e tinha notas muito altas! Queria ser a melhor, em tudo! Ultimamente, já não consigo! Estou muito cansada!
Mas, continuo a querer dominar, controlar tudo, sobretudo, controlar os desejos do meu estômago, quando me pede, insistentemente, gulodices e as comidas de que eu gosto!
Dizem-me que estou a perder peso, em excesso e que já tenho os ossos quase à mostra e as veias salientes. Mas, eu continuo a ver-me pesada, enorme! Por isso e para esconder os refêgos de gordura, que se vão amontoando, em mim, uso roupa larga!
Vejo-me ao espelho e sei que não tenho graciosidade nenhuma, nem encanto, nem leveza!
Um elefante a dançar a valsa, seria, talvez, mais elegante do que eu a deslocar-me, de um lado para o outro, com as minhas banhas a tremerem, como gelatina!

Nos meus sonhos mais róseos, eu vejo-me linda, leve, deslizante, quase etérea, como uma sílfide! E, é assim, que eu irei ser! Um dia!

Quando atingi os trinta quilos, internaram-me, no hospital!
Foi a maneira mais suave que os meus pais encontraram para me dizerem que não gostam de mim e estão fartos de me aturarem! Ninguém, aliás, gosta de uma rapariga volumosa, balofa e feia!
Tenho a pele seca e fina que, mesmo assim, eu esfrego muito bem, com sabonete, para que nem uma ponta de gordura me possa conspurcar!
Já não tenho menstruação há uns meses e os meus braços, pernas e costas estão cobertos de uma penugem, que, dizem, se chama lanugo, que eu escondo com a roupa larga que gosto de usar!
O meu cabelo está mais fino e muito menos farto mas, não é a pele, nem o cabelo, nem o lanugo, nem a amenorreia, que me preocupam!
Os meus pais discutem muito, por minha causa, eu sei, e parecem sofrer cada dia mais, especialmente a minha mãe, sempre tão bonita e elegante mas, a perder, rapidamente, o viço e a alegria! E, eu sem saber o que fazer por eles!
Também, não entendo muito bem porque se afligem e se afligiram, sempre tanto, com a minha dieta!
Numa biografia da Sissi, a linda e elegantíssima imperatriz da Áustria e rainha da Hungria, cujos vestidos ainda hoje são um espanto, pela cintura tão delicada e fina que manteve até à morte, conta-se que, quando foi assassinada, aos sessenta anos, ela tinha muitos dias, em que só comia uma laranja. Eu como mais: duas maçãs ou, duas fatias de ananás e um iogurte magro com alguns cereais!

No hospital, tenho conhecido muitos jovens com anseios iguais aos meus mas, alguns horrorizam-me porque persistem, teimosamente, numa dieta de que já não necessitam pois, são já pele e osso, com os olhos enormes, nem sei se vazios ou, meio alucinados, os braços e as pernas cheios de manchas arroxeadas, e fazem-me lembrar aqueles meninos, completamente desnutridos, da Somália mas, sem as barrigas enormes, grávidas de nada, grávidas de falta de tudo!
Há uma rapariga, que me faz muita impressão, porque até cospe a saliva! Para não se sentir conspurcada!

A vida no hospital, não é fácil! Querem que “façamos as pazes” com a comida! Não quero! Custou-me muito chegar aos trinta quilos, para agora deitar tudo a perder! Não! Nem um grama, nem uma caloria, nem um bocadinho de gordura vai entrar dentro de mim!
Não quero voltar a sentir aquela sensação de enfartamento e de sujidade, como quando me obrigaram a comer uma colher de arroz, um pedacinho de peixe e uma folha de alface!
Só fiquei bem, quando, às escondidas, vomitei tudo!

Tenho medo de começar a comer e nunca mais ser capaz de parar! Sei lá...!
E, depois, esta abstinência a que me obrigo, esta sensação de limpeza e de esvaziamento, dão-me um imenso conforto!


Continuo no velório! Ouço, num grupo de professores, a minha professora de Inglês, dizer: “Que pena! Ela era tão inteligente, tão ansiosa por saber! Poderia ter ido tão longe!”
O João, rodeado de colegas nossos, com os lindos olhos humedecidos de lágrimas dizia, que eu ouvi, quando passei por eles:” Eu gostava tanto dela! Era tão engraçada, tão boa colega, tão amiga! Vou sentir muito a sua falta!”
Tenho de saber quem é esta “ela” de quem todos falam! Quem será esta “ela” por quem o João chora e de quem vai ele sentir, assim, tanta falta?
O meu irmão continua sentado no banco duro, de madeira, os olhos chorosos, a cabeça baixa. A Francisca está a agarrá-lo, ansiosamente, quase furiosamente, como se receie o perigo iminente de ele cair do banco abaixo!

Neste momento, entram os meus pais. Meu Deus, como estão diferentes, parecem ter envelhecido muitos anos, os rostos exaustos, devastados!
Fui direita a eles para os abraçar e consolar mas, imersos na sua dor profunda, uma dor muito deles, não me vêem, nem me ouvem!. Que estranho é isto tudo! Parece que estou a viver a irrealidade paralisante de um tremendo pesadelo, do qual, por mais que me debata, não consigo acordar!
Indiferente às minhas carícias e à meiguice das minhas palavras, a minha mãe aproxima-se da urna, agora quase coberta de rosas brancas, que se vão começando a desfolhar, e um rio de lágrimas desaba sobre quem ali descansa!
Por quem chorará, assim, tão aflitivamente, a minha mãe? O meu pai não chora, não se aproxima da urna, nem da minha mãe, que mal se segura de pé! Não fala com ninguém! Parece de pedra! Ali está, ao canto, tão cansado, tão desligado, tão ausente! Nem sei de qual dos dois tenho mais pena!
Mas quem é aquela “ela”, por quem todos choram?

Aproximo-me da urna envernizada e olho, atentamente, para quem ali repousa. Vejo um pequeno volume, envolto em sedas e tules brancos, quase afogado em rosas brancas que se vão desfolhando com o calor e, entre tules e pétalas de rosa, vejo um rosto emaciado, magro, a pele esticada sobre os ossos, e as mãos esqueléticas, com os dedos entrelaçados, entre os quais, o João prendeu um pequenino bouquet de orquídeas brancas! Pelo menos foi o que ouvi a Teresa dizer, há pouco!
O rosto não me é estranho... Na verdade, é vagamente parecido com o meu... Mas, eu tenho a cara redonda com bochechas balofas e luzidias!
Sobre o rosto imóvel, de cera, ainda escorrem as lágrimas da minha mãe e parece que é a morta que chora!

De repente, lembro-me...
Tinha andado, há uns tempos, a sentir-me muito triste, muito angustiada, muito deprimida e a Andreia deu-me, a meu pedido, uns comprimidos, daqueles que nos fazem sentir melhor. Tomei-os e adormeci! Tenho a vaga ideia de um alvoroço estranho, à minha volta, de ouvir rodas a chiarem enquanto me levavam, às sacudidelas, para uma sala branca e fria e de ouvir uma voz que, na altura, reconheci, dizer:” Fica connosco, Rita! Fica connosco, querida! Por favor, Rita, fica comigo! Vamos perdê-la! Estou perdê-la! Perdi-a!”

Depois, senti-me cair... cair, sobre um colchão branco, enorme, feito de nuvens macias e fofas. Pareceu-me ouvir vozes, muito ao longe, um leve adejar, à minha volta e o som, lindo, ciciado, do Bolero de Ravel que adoro e que ouço, incansavelmente!
Lembro-me de, nesse momento, me sentir muito bem! Relaxada, calma, liberta! Depois, mais nada...!

Surpreendida, compreendi, enfim!
Sou eu que, branca, imóvel e finalmente tranquila, entre tules e pétalas de rosa, descanso ali! A minha luta, sem quartel, contra o excesso de peso e a comida, terminou! Nem mais um grama, nem mais uma caloria, nem mais um bocadinho de gordura, vão entrar dentro de mim! Nunca mais!

Porque, serenamente, morri, esta madrugada!

Como diria Sartre, “ les jeux sont faits” ! Sinto uma imensa e fantástica indiferença descer sobre mim e afastar-me, irremediavelmente, de todos e de tudo!
Mas, estranhamente, não me importo!
Aprisionada, perdida, nos tentáculos poderosos, dessa gélida indiferença , esqueço os meus afectos, as minhas alegrias, os meus dramas e os meus medos! Numa absoluta solidão!
Para sempre...!


(A Abstinência - Virtude)

( Neste caso, acima referido, a Abstinência doentia, levada ao exagero)

MC

Sem comentários: