terça-feira, 14 de abril de 2009

A jarra de cristal...Josefa?

Não era uma rapariga atraente nem, particularmente simpática.
Trabalhava numa repartição das Finanças e, apesar de ser muito reservada, dava-se bem com todas as outras funcionárias. Era prestável e atenciosa! Vestia modestamente, não ía ao cabeleireiro, não se maquilhava e não se lhe conheciam amigos.
Não comentava os filmes ou, os livros do momento e nunca aceitava os convites das companheiras de trabalho, para uma saída à noite.
Parecia ter dificuldades económicas e poupava tudo o que podia! Comia, no escritório, num canto da sua secretária, o almoço frugal que trazia de casa.
As outras raparigas, às vezes convidavam-na, com o pretexto de uma qualquer celebração, para almoçar com elas, porque as incomodava a melancolia, o acanhamento e a pobreza envergonhada que julgavam advinhar na Josefa.
E, lamentavam a vida estreita e vazia daquela mulher ainda jovem mas, tão despojada, tão limitada, tão tristemente, solitária!

No entanto, a Josefa não era pobre! Tinha dinheiro, muito dinheiro, que herdara de uma velha tia de quem tratara com desvelo mas, com os olhos postos no testamento e na avultada herança que ela, por sua morte, esperava, avara e ansiosa!

Tinha, no apartamento onde morara com a tia, um pequeno cofre, aparafusado, num roupeiro, onde guardava, com reverência, algumas dezenas de notas, novas e tersas, só para ter o infinito prazer de as ver, de as tocar suavemente, de as cheirar, deliciada!
Despida, deitada na cama, era já um ritual seu, colocá-las sobre o rosto, sobre os seios, sobre a barriga e sobre as coxas.
Com os olhos fechados, muito quieta, a respiração um pouco opressa, sentia uma ansiedade esquisita, uma exaltação que quase fazia doer e o suor escorria, como se estivesse em fogo, deixando-lhe a pele viscosa e o cabelo empastado na nuca!
O seu corpo nunca tinha sido fonte de prazer para ninguém, nem ela nunca sentira aquele arrebatamento, aquela plenitude quase divina, de dois corpos que se fundem, no acto carnal de desejo e de, digamos, amor!
Mas, nesses momentos de intenso deleite, em que as notas pousadas, de leve, sobre si, pareciam ter dedos, que a acariciavam e lhe tocavam a pele com a sensualidade morna, fremente e erótica de um amante, era como se , sem ela saber, estivesse a viver uma impensável relação de amor e de sexo, com aqueles pedaços de papel, que a cobriam! Era, então, que lhes chamava queridas e sentia a profunda frustação de não as poder abraçar com força, contra o peito nú!
Era, certamente, uma perversidade mas, Josefa amava o dinheiro com a avidez, o encantamento e a luxúria com que se entregaria ao ser amado!
Eram lindas e coloridas as notas que, nos seus momentos de delírio, pareciam dedilhar, docemente, o seu corpo e que ela manuseava com um imenso cuidado e carinho!

Era, talvez, esse traço estranho, desagradável e perverso que se escondia na Josefa, que afastava as pessoas que conviviam com ela, sem que, elas próprias soubessem explicar o porquê da sua instintiva repulsa!

Um dia, uma das raparigas do escritório, a Inês, que comprara um apartamento, convidou-as para um pequeno jantar, no Sábado seguinte, para celebrar a a beleza da sua casa nova e o seu arrojo na compra!
Pensaram na Josefa, sempre só, e decidiram que ninguém levaria os namorados: era um jantar de mulheres!
A Inês mandaria vir pizzas, a Madalena, a Rita e a Sofia ofereceram-se para tratar das sobremesas, que teriam de ser variadas!
A Josefa não se ofereceu para levar nada, o que não surpreendeu ninguém e recusou participar no pequeno presente que todas queriam dar, em conjunto, dizendo que queria fazer uma surpresa!

A Inês e ela apanhavam, cada uma o seu autocarro, na mesma paragem.

Num fim de tarde, nessa semana, era ainda cedo e entretiveram-se a ver a cara e requintada loja de porcelanas e de cristais, que ficava mesmo em frente.
De repente, a Inês apontou para uma lindíssima e elegante jarra de cristal cor-de rosa e disse que um dia teria uma exactamente assim, fosse qual fosse o seu preço! Depois riu-se da sua tolice, despediu-se e correu para o autocarro que, entretanto, chegara.

A Josefa mal a ouvia! Desde o convite para o jantar, andava inquieta e preocupada com o presente, com a tal surpresa que prometera fazer! Não queria, isso não, gastar dinheiro!

Na Sexta-feira, antes de apanhar o autocarro, olhou, distraída para a montra da loja dos cristais e decidiu entrar. Talvez, quem sabe, encontrasse qualquer bugiganga pequenina e barata.
Quando entrou, viu, quase junto ao balcão, cinco pedaços de cristal cor-de–rosa que lhe lembraram, de imediato, a jarra da montra.
Josefa olhou, curiosa, para a empregada e disse:” Não me diga que estes pedaços, aqui caídos, são o que resta daquela linda jarra que esteve na montra?
“ Foi um cliente que a partiu! Felizmente, eu tinha outra em armazém mas, o descuido ficou-lhe caro! Levou uma jarra e pagou duas!”
A empregada, uma rapariguita com um aborrecimento mortal estampado no rosto, preparava-se para os apanhar os cinco pedaços quebrados quando, num relâmpago, a Josefa teve o que lhe pareceu ser uma ideia genial! Observou a empregada que lhe pareceu pouco esperta e muito contrariada por ter de estar ali, na loja, sem clientes!
Então, respirou fundo e disse: “ Ao ver estes pedaços de cristal, pensei pregar uma partida à minha irmã mais nova que tem estado insuportável. Poderia, por favor, pô-los na embalagem e fazer um embrulho bonito, como se a jarra estivesse perfeita e fosse um presente?
A empregada olhou para a Josefa com espanto e meio-desconfiada! Josefa apressou-se a dizer: “ Irmã mais nova, sabe? Fazia-lhe muito bem uma liçãozinha...!

Enquanto ela fazia o embrulho com um bonito papel e um vistoso laço com duas pequenas rosas de cetim presas, no centro, a Josefa foi passeando pela loja, sentindo uma excitação quase incontrolável que não a deixava estar parada, inundada por um imenso alívio e uma satisfação fantástica consigo própria!
“Foi uma sorte! Foi uma sorte!” repetia baixinho.

No Sábado, à noite, quando a Inês abriu a porta, foi uma Josefa quase sufocada de aflição e lavada em lágrimas, que lhe entrou , de rompante, pela casa dentro: “ Caí, Inês! Comprei-te aquela jarra de cristal cor-de–rosa de que tanto gostaste, lembras-te? Mas, tropecei ao descer o passeio, caí desamparada e a jarra partiu-se! Tenho a certeza, Inês, partiu-se! E agora...?
A Inês tentou acalmar a Josefa abraçando-a com afecto: “ A jarra de cristal... Josefa? Para mim? Sossega! O que interessa é a intenção e tu foste amorosa!
Mas, sabes, acho que a jarra está intacta! Não se partiu, vais ver! Aliás não se ouve o som de pedaços de cristal a chocalhar!”
E, abanou suavemente a caixa que permaneceu silenciosa!
Josefa empalideceu e ficou rígida! Não podia ser possível...

Inês, tirou o o laço e o papel devagar e com muito cuidado, como que, para saborear, por mais tempo, o momento delicioso de abrir um presente tão desejado! A jarra era tão linda!
Depois, com um gesto manso, abriu a caixa onde, perante o desapontamento da Inês, o assombro de todas e o olhar horrorizado da Josefa, se aninhavam, num nicho, em forma de jarra, forrado a papel de veludo azul, cinco pedaços de cristal cor-de-rosa, cada um dos quais, cuidadosamente, embrulhado em delicado papel de seda!

"A Luxúria é como a Avareza: quanto mais tesouros tem, mais sôfrega se torna"
(Montesquieu)

Luxúria/ Avareza( Pecados mortais)

MC

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