Chamo-me Bernardo.
Os meus amigos dizem que tenho um nome “ bué” de chic! Eu não acho nada!
Tenho quinze anos e estou na Tutoria ou, melhor, num Colégio de Correcção, em regime de vigilância especial.
A minha mãe é prostituta e era traficante de droga mas, está presa, há uns meses. Compreendo-a! Todo o dinheiro era pouco para fazer face às despesas. Tenho mais dois irmãos e uma irmã. Todos mais novos do que eu.
O meu pai? Sei lá quem é o meu pai! Se calhar, nem a minha mãe sabe! Mas, bem ou mal, criou-nos, a todos, sozinha!
Tinha doze anos quando comecei a andar com um gangue, no gamanço. Até tenho jeito e não me estava a sair nada mal! O chefe, um gajo de dezassete anos, o João, gostava de mim e do meu trabalho mas, tive o azar de ser apanhado!
E, aqui estou na Tutoria, quer dizer, neste Colégio de Correcção, para me corrigir e para me fazer um homem digno e honesto, um cidadão de bem e de valor, na sociedade a que pertenço, como dizem os nossos superiores!
No entanto, acho que nem eles acreditam no que dizem e sabem que, nunca seremos dignos, nem honestos, nem nunca teremos importância nenhuma na sociedade a que, parece, pertencemos!!
No que a mim diz respeito, não será fácil ou, mesmo possível, mudar os hábitos de sorna lazarenta que me agradam e deixar a vida de rua e de roubo, a única que sempre conheci!
Tempos houve, em que a minha mãe tentou mudar o destino: conseguiu arranjar um emprego precário, é claro, e um namorado estável. Durante dois anos vivemos razoavelmente bem e senti-me quase feliz!
Mas, ela engravidou da minha irmã, perdeu, imediatamente,o emprego e o namorado deu à sola!
Voltou tudo à estaca zero!
Acho que é por isso que nunca gostei da minha irmã, nunca lhe consegui pegar ao colo e tudo me impacienta nela! Estragou, ao nascer, o pouco, mas bom, que tínhamos!!
Dizem que sou indisciplinado e agressivo! A verdade é que odeio estar aqui preso, sim, porque isto é uma prisão camuflada sob a caridosa etiqueta de Colégio mas, onde impera o regime autoritário e duro de uma cadeia e me obrigam a estudar!
Temos professores que vêm aqui dar-nos as aulas e são outros, de fora, que vêm fazer-nos os exames.
Esses, os que vêm de fora, dão-me vontade de rir! Falam baixinho, sorriem, com um sorriso plastificado, colado nos lábios e tratam-nos como se estivéssemos doentes e tivessem medo de se conspurcar, em contacto connosco! Algumas, as mais patéticas, trazem-nos rebuçados, chocolates ou bolachas, como quem dá uns ossitos a cãezinhos!
Não, a comparação não é correcta! Porque os cães que recebem ossinhos e bolachas, vão ao veterinário, são bem alimentados, são queridos e têm muito mimo!
Nós, não!
Elas dão-nos os rebuçados, os chocolates e as bolachas porque não se sentem à vontade connosco e bem lá no fundo, têm medo destes rapazes que roubaram, foram agressivos, violaram e, em situações limite, podem, talvez, ter assassinado! E, continuam instáveis!
Na tutoria, quer dizer, no Colégio de Correcção, dizem-nos para agradecer essas amabilidades! A mim, apetece-me atirar-lhes com aquelas míseras guloseimas à cara e mandá-las para o raio que as parta!
Advinho-lhes, aliás, o mal disfarçado alívio, quando se vão embora, com os seus sorrisos de plástico mas, ansiosas e apressadas!
Apesar de tudo e da minha frieza, tenho pena que a minha mãe tenha andado a vender o corpo na prostituição e a alma, no tráfico da droga!
Mas, francamente, acho que não gosto dela! É seca, fria, ríspida e agressiva!
Tenho saudades de beijos, de palavras carinhosas e de incentivo, de mimos inesperados, mesmo sem nunca ter tido nada disso!
Tenho sede do carinho da minha mãe, que já se esqueceu de mim, há muito tempo e do afecto e do companheirismo do pai que nunca conheci!
Às vezes, nos meus momentos de delírio, penso como tudo seria diferente se eu tivesse vivido com os meus pais e com os meus irmãos, numa casa confortável e ter, o que chamam, uma vida normal e tranquila!
Gostava, sobretudo, de poder comprar música, muita música, roupas que me ficassem bem e usar um perfume bom, quente e sensual, como o do nosso director!
Penso que, nessa situação, até ía gostar de ir à escola, curtir umas saídas com os amigos e conhecer umas miúdas giras, que não fossem fáceis e soubessem conversar, sem dizerem um palavrão em cada três palavras!
Gostava , mesmo, de ter uma namorada que me curtisse, como sou: feio, com espinhas na cara e desengonçado!
É por tudo isto, que vivo roído de inveja! Tenho uma inveja tremenda dos gajos da minha idade que são bem-parecidos e atraentes, andam bem vestidos e cheiram bem, que sempre tiveram uma vida confortável, um quarto só para eles, com computador e televisão e nunca se viram atirados para o gamanço, porque era preciso trazer dinheiro para casa!
Tenho inveja da comidinha boa que sempre tiveram, na mesa, da cama quente e do beijo da mãe antes de adormecer!
Tenho uma inveja danada do sucesso que esses gajos têm junto das miúdas mais giras da escola!
Dizem que cobiça é querer o que não se tem!
Inveja é querer que o outro não tenha o que não se tem e mostra o instinto do roubo!
Eu, que não sou filósofo, acho que ando roído por tudo isso, pela cobiça e pela inveja! E, também por esta revolta, esta raiva imensa que me sufoca e me consome e que estas grades pesadas, que me prendem, não conseguem conter e nunca irão extinguir!
Porque não é aqui, nem em lado nenhum que me vou corrigir e tornar-me num homem digno, um homem de bem e honesto, como eles dizem, embora não acreditem!
Mas, tudo isso, agora, não interessa nada!
Sei, isso sim, que já tenho uma vida, à minha medida, lá fora, à minha espera!
Uma vida, como a de nós todos, que aqui estamos, que é um beco escuro, sem saída, onde não se vislumbra a Esperança, nem se vê Futuro! Porque, se calhar, nem queremos!
Vou, aliás, ter de parar de escrever porque, para dizer a verdade, não vejo mesmo nada!
Estou cego pelas lágrimas grossas de pura raiva, que me encharcam o rosto e por esta inveja má, virulenta, medonha, cada vez mais forte, cada vez mais mortal, cada vez mais, profundamente, enraizada em mim!
MC
( A Inveja - Pecado Mortal)
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