Ainda não nasci, nem sei quando vou nascer. Ainda não vejo, não conheço mas, já ouço tudo!
Sei, por isso, que, juntamente com a minha mãe, sou uma cobaia humana. Co-bai-a, gosto deste som!
A minha mãe tem o vírus da Sida! Ouvi-a contar que foi infectada pelo meu pai, um drogado manhoso. Eu não sei o que é um pai, nem sabia que tinha um, mas parece que pai é coisa ruim que traz desgraça! Também não sei o que é drogado manhoso mas, coisa boa, não pode ser!
Estamos as duas a experimentar um medicamento novo, que trata e pode impedir a transmissão da Sida, a doença da minha mãe, para mim e eu serei saudável.
Para que isso aconteça, somos cobaias humanas! Não sei o que é uma cobaia mas, deve ser bom, pelo menos, acho que sempre será melhor do que pai!
Sinto-me muito confortável, neste ambiente quentinho e aquoso da barriga da minha mãe embora, uma vez por outra, me tenha sentido mal, muito inquieta e aflita!
Sei tudo isto, porque ouvi a minha mãe dizer ao senhor doutor, (não sei o que é um senhor, nem sei o que é doutor), que me sente inquieta e aflita.
Ele disse-lhe que é normal e que estou a crescer cheia de energia.
Se calhar, energia são umas espetadelas fininhas que fazem doer, e os meus pontapés, quando me apetece mudar de posição!
A minha mãe diz que sou uma menina e que me vai comprar roupinhas bonitas, com lacinhos e um bercinho branco e cor-de-rosa, com o dinheiro que lhe deram para deixar experimentar o medicamento novo, nela e em mim.
Parece que era pobre mas, agora está tranquila e feliz! Acho que pobre é uma outra doença que ela também tinha mas o dinheiro, que, parece, é um medicamento muito bom, curou-a!
Ouço-a dizer que não me vai faltar nada, vou ter muitos peluches fofinhos, um quarto branco e cheio de luz!
Não sei o que é ser menina, não sei o que são lacinhos, não sei o que é o branco, nem sei o que são peluches. O que será a luz? E, fofinho, o que será?
Pela vibração da voz e do riso da minha mãe, deve ser tudo, assim muito quentinho, muito suave, como a barriga dela e, por tudo isso, estou ansiosa por nascer!
Mas, de há umas semanas para cá, ela não se tem sentido bem e eu também não. Ouvi-a dizer que está assustada e tem medo, por mim e por ela! Por sermos cobaias humanas! Mas, eu acho que deve ser bom ser cobaia, afinal, foi ela que quis!
Eu ouvi o doutor, (doutor faz-me lembrar pai!), dizer-lhe que ela sabia, perfeitamente, o que fazia quando assinou o contrato! Não gosto deste som: con-tra-to! Magoa, quando o ouço! Não é macio, como bercinho, cor-de–rosa ou roupinhas!
Senti que ela estava nervosa e ele disse-lhe para ter paciência, que esse mal-estar, (também não sei o que é um mal-estar!), não tem importância, vai tudo correr bem, ela vai ficar melhor e eu vou ser uma menina saudável! Saudável, eu acho que deve ser como o ninho macio, onde que me estendo e me enrolo!
Às vezes, a minha mãe diz-me, muito baixinho, que espera que eu tenha cabelo loiro e olhos azuis, como ela.
E, eu, embora não tenha a mínima ideia do que sejam cabelo, olhos, loiro e azuis, estou ansiosa por ter o cabelo loiro e os olhos azuis , para ser igualzinha a ela!
A minha mãe costuma cantar para mim e eu ficava muito quieta, só para a ouvir! Ultimamente, tenho andado muito agitada e, mesmo quando ela canta, já não me aquieto, dou pontapés e revolvo-me, revolvo-me, no ninho morno e sedoso, onde me aconchego! A voz da minha mãe já não suaviza estes picos fininhos, que me espetam tanto...
Sei que não estou bem, porque foi, exactamente isso, que a ouvi dizer ao doutor, quando também lhe disse que está farta de sermos cobaias humanas, que nunca devia ter assinado o contrato, (este som magoa!) e preferia nunca não ter recebido dinheiro nenhum!
Acho que, agora, preferia, mesmo, ter ainda aquela doença que se chama pobre, porque afinal isto de ser cobaia é que me tem feito mal! A mim e a ela!
Hoje, ouvi a minha mãe falar muito alto com o doutor, (não gosto dele!), que falou ainda mais alto e disse-lhe: “Cale-se!” A minha mãe não disse mais nada, mas chorou, que eu ainda a ouvi, embora um bocadinho ao longe, o que é estranho, porque estamos sempre muito juntinhas...!
De repente, apercebo-me que nem sequer me revolvo, ou dou pontapés! Já mal consigo respirar ou mexer-me Estou muito cansada!
Já pensei que talvez esteja assim porque estou, mesmo, para nascer e poderei, então, rebolar-me nos lacinhos cor-de–rosa, no bercinho, nos peluches e na luz! Gosto deste som: luz!
Se for isso, fico muito contente porque vou, enfim, ver o rosto da minha mãe e tocar e sentir o cheiro da pele dela. Ouvi-la, já não é muito importante porque já lhe conheço a voz e o riso e o choro.
Mas não! Não devo estar, ainda, a nascer! E, estou tão ansiosa por nascer...
Mesmo agora estou a ouvi-la gritar:” Doutor, que me deu para tomar? Porque me convenceu a ser cobaia e, comigo, a minha filha, desse medicamento novo, se não o conhecia, se não tinha a certeza de nada? Não sinto o meu bebé! A minha menina morreu! Posso não lhe ter transmitido a Sida, mas matei-a!”
Não sei o que é matar, nem quero saber! Estou muito cansada!
Continuo sem saber, realmente, o que é ser cobaia mas, seja o que for, agora sei, que não é bom! Estou muito cansada e tenho muito frio, tanto frio, apesar da barriga da minha mãe ser muito quentinha!
Para falar verdade, também não sei o que é morrer! Ou, talvez saiba!
Porque, se morrer, é não respirar, se morrer, é deixar de ouvir, se morrer é este indiferente e gelado abandono, então...morri!
Nota:Este texto, que pretende ser uma sentida homenagem a tantas vítimas inocentes de um doloroso flagelo, não foi lido, na sessão de 9/12 e ainda bem, porque o seu registo, que é o meu registo, é completamente diferente dos óptimos textos, que ouvi ler.
MC
2 comentários:
Eu gostei e acho que deverias ter lido
Mais um belissimo texto!!Gostei mesmo muito!Emocionalmente perturbador!Foi pena que não tivesse sido lido.Teria certamente enriquecido a sessão.
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