quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Confissões de uma cobaia humana

Ainda não nasci, nem sei quando vou nascer. Ainda não vejo, não conheço mas, já ouço tudo!
Sei, por isso, que, juntamente com a minha mãe, sou uma cobaia humana. Co-bai-a, gosto deste som!
A minha mãe tem o vírus da Sida! Ouvi-a contar que foi infectada pelo meu pai, um drogado manhoso. Eu não sei o que é um pai, nem sabia que tinha um, mas parece que pai é coisa ruim que traz desgraça! Também não sei o que é drogado manhoso mas, coisa boa, não pode ser!
Estamos as duas a experimentar um medicamento novo, que trata e pode impedir a transmissão da Sida, a doença da minha mãe, para mim e eu serei saudável.
Para que isso aconteça, somos cobaias humanas! Não sei o que é uma cobaia mas, deve ser bom, pelo menos, acho que sempre será melhor do que pai!
Sinto-me muito confortável, neste ambiente quentinho e aquoso da barriga da minha mãe embora, uma vez por outra, me tenha sentido mal, muito inquieta e aflita!
Sei tudo isto, porque ouvi a minha mãe dizer ao senhor doutor, (não sei o que é um senhor, nem sei o que é doutor), que me sente inquieta e aflita.
Ele disse-lhe que é normal e que estou a crescer cheia de energia.
Se calhar, energia são umas espetadelas fininhas que fazem doer, e os meus pontapés, quando me apetece mudar de posição!
A minha mãe diz que sou uma menina e que me vai comprar roupinhas bonitas, com lacinhos e um bercinho branco e cor-de-rosa, com o dinheiro que lhe deram para deixar experimentar o medicamento novo, nela e em mim.
Parece que era pobre mas, agora está tranquila e feliz! Acho que pobre é uma outra doença que ela também tinha mas o dinheiro, que, parece, é um medicamento muito bom, curou-a!
Ouço-a dizer que não me vai faltar nada, vou ter muitos peluches fofinhos, um quarto branco e cheio de luz!

Não sei o que é ser menina, não sei o que são lacinhos, não sei o que é o branco, nem sei o que são peluches. O que será a luz? E, fofinho, o que será?
Pela vibração da voz e do riso da minha mãe, deve ser tudo, assim muito quentinho, muito suave, como a barriga dela e, por tudo isso, estou ansiosa por nascer!
Mas, de há umas semanas para cá, ela não se tem sentido bem e eu também não. Ouvi-a dizer que está assustada e tem medo, por mim e por ela! Por sermos cobaias humanas! Mas, eu acho que deve ser bom ser cobaia, afinal, foi ela que quis!
Eu ouvi o doutor, (doutor faz-me lembrar pai!), dizer-lhe que ela sabia, perfeitamente, o que fazia quando assinou o contrato! Não gosto deste som: con-tra-to! Magoa, quando o ouço! Não é macio, como bercinho, cor-de–rosa ou roupinhas!
Senti que ela estava nervosa e ele disse-lhe para ter paciência, que esse mal-estar, (também não sei o que é um mal-estar!), não tem importância, vai tudo correr bem, ela vai ficar melhor e eu vou ser uma menina saudável! Saudável, eu acho que deve ser como o ninho macio, onde que me estendo e me enrolo!
Às vezes, a minha mãe diz-me, muito baixinho, que espera que eu tenha cabelo loiro e olhos azuis, como ela.
E, eu, embora não tenha a mínima ideia do que sejam cabelo, olhos, loiro e azuis, estou ansiosa por ter o cabelo loiro e os olhos azuis , para ser igualzinha a ela!
A minha mãe costuma cantar para mim e eu ficava muito quieta, só para a ouvir! Ultimamente, tenho andado muito agitada e, mesmo quando ela canta, já não me aquieto, dou pontapés e revolvo-me, revolvo-me, no ninho morno e sedoso, onde me aconchego! A voz da minha mãe já não suaviza estes picos fininhos, que me espetam tanto...
Sei que não estou bem, porque foi, exactamente isso, que a ouvi dizer ao doutor, quando também lhe disse que está farta de sermos cobaias humanas, que nunca devia ter assinado o contrato, (este som magoa!) e preferia nunca não ter recebido dinheiro nenhum!
Acho que, agora, preferia, mesmo, ter ainda aquela doença que se chama pobre, porque afinal isto de ser cobaia é que me tem feito mal! A mim e a ela!
Hoje, ouvi a minha mãe falar muito alto com o doutor, (não gosto dele!), que falou ainda mais alto e disse-lhe: “Cale-se!” A minha mãe não disse mais nada, mas chorou, que eu ainda a ouvi, embora um bocadinho ao longe, o que é estranho, porque estamos sempre muito juntinhas...!
De repente, apercebo-me que nem sequer me revolvo, ou dou pontapés! Já mal consigo respirar ou mexer-me Estou muito cansada!
Já pensei que talvez esteja assim porque estou, mesmo, para nascer e poderei, então, rebolar-me nos lacinhos cor-de–rosa, no bercinho, nos peluches e na luz! Gosto deste som: luz!
Se for isso, fico muito contente porque vou, enfim, ver o rosto da minha mãe e tocar e sentir o cheiro da pele dela. Ouvi-la, já não é muito importante porque já lhe conheço a voz e o riso e o choro.
Mas não! Não devo estar, ainda, a nascer! E, estou tão ansiosa por nascer...
Mesmo agora estou a ouvi-la gritar:” Doutor, que me deu para tomar? Porque me convenceu a ser cobaia e, comigo, a minha filha, desse medicamento novo, se não o conhecia, se não tinha a certeza de nada? Não sinto o meu bebé! A minha menina morreu! Posso não lhe ter transmitido a Sida, mas matei-a!”
Não sei o que é matar, nem quero saber! Estou muito cansada!
Continuo sem saber, realmente, o que é ser cobaia mas, seja o que for, agora sei, que não é bom! Estou muito cansada e tenho muito frio, tanto frio, apesar da barriga da minha mãe ser muito quentinha!
Para falar verdade, também não sei o que é morrer! Ou, talvez saiba!
Porque, se morrer, é não respirar, se morrer, é deixar de ouvir, se morrer é este indiferente e gelado abandono, então...morri!

Nota:Este texto, que pretende ser uma sentida homenagem a tantas vítimas inocentes de um doloroso flagelo, não foi lido, na sessão de 9/12 e ainda bem, porque o seu registo, que é o meu registo, é completamente diferente dos óptimos textos, que ouvi ler.

MC

2 comentários:

redonda disse...

Eu gostei e acho que deverias ter lido

SC disse...

Mais um belissimo texto!!Gostei mesmo muito!Emocionalmente perturbador!Foi pena que não tivesse sido lido.Teria certamente enriquecido a sessão.