sábado, 19 de dezembro de 2009

As andorinhas

Era uma casa térrea, pintada de branco, com um jardinzinho, bem cuidado, à frente e uma pequena horta, com três árvores de fruto, atrás.
À entrada, na parede branca, pousavam, em fila, da maior para a mais pequena, seis andorinhas toscas, de barro, como um símbolo ingénuo de alegre harmonia familiar, como um singelo prenúncio de uma Primavera eterna naquele lar.
A casa estava mobilada sem luxos, mas com um gosto simples, onde não faltavam os naperons de renda, tecidos com mil pacientes laçadas e sempre meticulosamente limpa.
Na cozinha, uma mulher baixa e roliça, preparava o jantar. Curvava-se, ligeiramente, para a banca e desprendia-se dela, a aura cinzenta de um infinito cansaço e de um triste desalento, a boca sumida num rictus de amargura.
À entrada, soaram uns passos pesados e, ligeiramente incertos.
Nesse instante, uma incontrolável aversão, mesclada de medo e de uma imensa incerteza, submergiu-a.
Pouco depois, entrou, de rompante, na cozinha, um homem de estatura mediana, gordo, com os olhos injectados, pequeninos e piscos, e o pescoço baixo, um rolo de gordura lustroso e vermelho, como o de um porco. O cabelo grisalho, ralo mas comprido, colava-se, em desordem, à testa.
Ela percebeu, de imediato, que ele já estava meio bêbedo. Como sempre!
“ O jantar está pronto?” rosnou, grosseiro.
“ Está quase!” respondeu ela, sem olhar para ele, o coração a bater, num desatino, muito quieta, junto do fogão.
Parecia ainda mais baixa, encolhida e curvada sobre o tacho que fervia. Estava exausta! Estava farta! Dele, daquela amargura, da vida!
“ Não sei o que fazes todo o dia, em casa, mulher! Nem agora que estás desempregada, as coisas estão prontas a horas! És uma preguiçosa, uma relaxada, é o que tu és!”
Ela suspirou e não respondeu.
Estava, realmente, desempregada, há três meses, mas continuava a trabalhar! Trabalhava, talvez, ainda mais duramente, a dias e a lavar as escadas de uns escritórios.
“ Faço o que posso e não te peço dinheiro, pois não? Não te peço nada, aliás!”
Ele ignorou-a e ela começou a servir o jantar.
Já sentado, ele comeu,sôfrego, a sopa e logo a seguir a massa guisada com frango, sem esperar por ela.
Ao vê-lo sorver a comida, como um animal esfaimado, uma onda de nojo e de desesperado ódio, inundou-a, sufocando-a.

Tinham dois filhos.
A filha, uma rapariga de dezanove anos, trabalhava, para seu desgosto, num bar, à noite. A mãe mal a via. Entrava em casa, já alta manhã. Dormia horas a fio e só se dignava sair do quarto, para comer e tomar banho. Falava continuamente, ao telemóvel e estendia, na mais absoluta desarrumação, as roupas e os sapatos, pelo quarto.
Curiosamente, o pai não a enfrentava! Desde sempre, tivera para com a filha, gestos, inesperados nele, de delicada doçura e de meiguice! Ela tinha sido sempre a sua menina, a quem perdoava tudo, a quem permitia tudo! Levava-a ao parque, ao circo, ao cinema e comprava-lhe guloseimas, brinquedos e revistas.
Já crescida, quando se tentara impor, ela enfrentara-o, provocadora, uma luz estranha, maligna, no olhar. E ele calara-se submisso e sumira-se, sorrateiro!
O filho, um bom rapaz, inteligente e sensato, era a luz dos seus olhos, o seu enlevo e o seu orgulho! E, como a sua ternura, o calor do seu sorriso lhe faziam falta! Tanta falta!
Trabalhava em Espanha e mandava-lhe, sem o pai saber, algum dinheiro, dádiva preciosa para equilibrar as despesas, em casa.
Como se lesse os seus pensamentos, ele disse, com incontida raiva: “ Aquele ingrato do Alberto não diz nada! Lá está em Espanha, a viver como um lorde. Quando cá veio, no Verão, parecia um principe, vaidoso e tolo!” E, a inveja que ressumava, ferina, das suas palavras, atingiu-a como uma bofetada.
“ Se ele está bem, é porque trabalha muito. E, telefona, todas as semanas, bem sabes!” disse ela com os olhos, rasos de lágrimas, uma fúria danada a crescer, impetuosa, dentro dela.
“ Telefona, todas as semanas? E dinheiro? Manda dinheiro para casa? Não é obrigação dele, mandar dinheiro para casa?”
“Obrigação dele, mandar dinheiro para casa? Porquê? Ele é um homem de bem e um bom filho! Tu, que és forte e saudável, porque não deixas de beber e trabalhas, a sério, como ele? Como eu, mesmo desempregada, como não te cansas de mo lembrar?”
Ele levantou-se, os olhos faiscantes de cólera, o rosto torcido de ódio, o pescoço arroxeado, as veias dilatadas, a latejarem, ameaçadoramente!
O diabo, ele lembra-me o diabo, do meu catecismo, quando eu era criança, pensou ela, num sobressalto aflito!
Um ronquido irado escapou-se-lhe, então, da garganta e ele fez menção de lhe atirar com o copo, que tinha mão, ao rosto, mas não se atreveu! O olhar dela, agora duro e frio, donde pareciam desprender-se chispas acesas de ódio e de desprezo, fixava-o desafiador!
Descontrolado, atirou o copo ao chão que se estilhaçou em mil pedaços de raiva! Depois, com um esgar de maldade, puxou uma ponta da toalha e a louça que estava em cima da mesa, partiu-se, em mil bocados.
Com a casquinada estrídula e alvar, de um vencido, saíu, cambaleante, da cozinha.
Poucos minutos mais tarde, a porta da frente bateu com tanta força que a casa abanou e pareceu desconjuntar-se. Ela estremeceu assustada mas, em seguida, respirou de alívio.
"Logo vem a cair de bêbedo! Como sempre!" E, exausta, encolheu os ombros!
A filha passou por ela, numa pressa indiferente, como se não se tivesse apercebido de nada. “ Até amanhã, mãe!” E dirigiu-se para a porta da rua.
Vestia uns jeans muito justos, um top muito decotado, que também lhe deixava parte da barriga de fora, um casaco de curto a imitar pele, o rosto, ainda muito jovem, carregado de maquilhagem. Atrás de si deixou o rasto forte de um perfume barato. Era tudo barato e vulgar nela! Ela própria, a sua filha, era uma prostituta barata e vulgar!
Abanou a cabeça e prendeu as lágrimas que se amontoavam no seu coração, que insistiam, teimosas, em subir e ameaçavam estrangulá-la, num nó apertado!
No súbito silêncio da casa, ela respirou fundo e começou a varrer os estilhaços dos copos e os cacos da louça, como destroços das vidas, que as telhas da sua casa encobriam, e que, agora, juncavam o chão da cozinha.

Lá fora, pousadas, em fila, na parede branca, da maior para a mais pequena, como um símbolo ingénuo de alegre harmonia familiar, como um singelo prenúncio, de uma Primavera eterna naquele lar, as inocentes andorinhas de barro continuavam, imperturbáveis, o seu infinito e infantigável voo, sem saírem do mesmo sítio!

MC

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