domingo, 6 de fevereiro de 2011

A bata amarela II

O desemprego

A senhora da cama 15 tinha sido submetida, com absoluto êxito, a uma intervenção cirúrgica e, dois dias depois, teria alta! Era motivo de alegria, tanto mais que, na cama ao lado, uma jovem de 32 anos debatia-se, no limiar da morte, entre o pânico e uma ténue esperança, depois de uma cirurgia de alto risco que, sabia, não lhe poderia trazer a almejada cura, apenas algum alívio e uns meses de vida!
Para ser franca, eu estava ansiosa por falar com a senhora da cama 15 e congratular-me com ela, pelas melhoras que eu, um bocadinho ousadamente, lhe vaticinara. Contudo, não foram sorrisos felizes nem palavras leves que me receberam! Foi um ambiente pesado de desespero que encontrei!
O marido, com o semblante carregado, os lábios apertados numa linha severa, agitava o jornal que, incapaz de ler, afastou para o lado, com um gesto brusco. Depois, ficou calado, quieto, com o olhar perdido e inexpressivo. Nos olhos dela li espanto e uma imensa aflição. Encolhida, também ela calada e muito quieta, chorava baixinho e deixava que as lágrimas gordas e em torrente escorressem livremente pelo rosto e se desfizessem na almofada.

Afastei-me surpreendida e silenciosa.

Quando mais tarde, voltei à pequena enfermaria, ela chamou-me. Estava sozinha e ainda a chorar, disse-me que o marido tinha sido despedido da empresa onde trabalhara muitos anos, como, aliás, temiam há uns meses, sem nunca acreditar que pudesse, de facto, acontecer. Tem cinquenta e seis anos, disse-me, vai ser muito difícil conseguir arranjar outro emprego. Eu estou em casa há quase um ano e temos dois filhos na faculdade. Não sei como vai ser! Estou aterrada, sabe? Mas, o que mais me aflige, é o desespero do meu marido! Trabalhou toda a vida, tem um grande orgulho em ter sido sempre, economicamente, a trave mestra da casa e, agora, não se conforma!
Na tentativa de a consolar disse-lhe que ele ainda não era assim tão velho que não conseguisse um emprego e lembrei-lhe a agonia sem remédio, daquela morte anunciada, na cama, mesmo ali ao lado, mas ela encolheu os ombros e virou a cara para o outro lado, certamente zangada com o que julgou ser a minha indiferença perante o seu drama!

Eu sei que é muito difícil relativizar os males, as desgraças, as injustiças, com que a vida, de vez em quando, nos fustiga!

No entanto, tenho de confessar que, se o seu enfado me surpreendeu, também me fez compreender que, para certas pessoas, pior do que a doença que têm sempre esperança de vencer, pior do que a separação e a morte, que são coisas naturais, e que facilmente afogam e aliviam nas lágrimas, nas rezas e nas recordações mais ou menos doces que guardam, pior do que tudo é a perda do emprego!
Penso mesmo que, muito pior do que as carências, a renúncia aos pequenos luxos e até, talvez pior do que a fome, é o infinito desalento e a vergonha de estar inactivo e de se sentir inútil!
Para muita gente, o desemprego é a tragédia maior, uma cruz ainda mais dolorosa do que o fim de tudo, porque é, para eles, exactamente, o trágico fim de tudo! Uma cruz pesada que tantos, neste momento, carregam com amargura e com revolta!

No dia sequinte, quem levou para casa a senhora da cama 15, uma mulher amarga mas em franca recuperação, foi um homem pálido, severo, esmagado pelo anátema do desemprego, pelo drama da inactividade e do mais absoluto desânimo!

MC

1 comentário:

José Almeida da Silva disse...

Esta página onde inscreveu a tragédia do desemprego, justamente num momento da vida em que nenhuma porta mais se abrirá, e a alegria do sucesso de uma doença, tantas vezes, que conduz ao "fim de tudo",foi escrita num dia de muita luz e de algum calor. Eu sei que o início e o fim do dia são ainda muito frios! Os acontecimentos são registados e a luz da reflexão ilumina quem os lê - é urgente pensar.

Este blogue é um imenso diário a exigir a nossa reflexão.

Um abraço.