quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Tricotando com palavras III

Hoje está um dia bonito, sereno e luminoso!
Vou retomar, no aconchego macio, do meu casaco de lã, o meu tricot de palavras...

É tempo de voar, reencontrar a alegria de viver e de correr, ansiosamente, atrás do
sonho, de voltar ao ponto de partida! Voltar à África encalorada, exuberante de luz e de cor, que me viu nascer e onde cresci!
Chorosa, deparei-me com um mar de luto. Um mar estranho que me enjoou, que me provocou a agonia do vómito e dos suores frios, quando o cheiro horrendo da fome mais negra, da doença sem remédio, da miséria mais pungente, da guerra mais impiedosa, me atingiu, em cheio, como uma bola incandescente de dor e de sangue!

Não sei tricotar este mar! Não vou tricotar este mar! Não quero tricotar este mar!

Então, com o poder imenso, fantástico, quase divino das palavras feitas novelos de lã, modifico este mar e transformo-o numa toalha imensa, esplêndida, cheia de cor e de luz, com um remate de espuma que é, afinal, uma sumptuosa renda de Bruges e que estendo sobre uma mesa infinita, agora alegre e farta pois, sobre ela há inesgotáveis alimentos e remédios, uma imensa solidariedade e uma forte e terna fraternidade! Para que não haja fome, nem doença, nem miséria, nem guerra!

E, eu tricoto esta toalha maravilhosa com os meus novelos amarelos, vermelhos, azuis, cor de laranja e verdes e deles brotam a música sensual da kizomba, o som agreste e excitante, dos batuques, os cheiros fortes, tropicais, da vegetação exuberante, do abacaxi, do maracujá, da papaia, do coco e o cheiro a barro, consolado, da terra vermelha depois da chuva!
Tricoto, ainda, com os meus novelos, agora, endiabrados, carregados de erotismo e desejo, os corpos negros, lascivos, suados, que se agitam indomáveis, em frémitos de prazer e de paixão, ao ritmo inquietante de frenéticas batucadas!

As palavras, meus novelos feiticeiros, conferem-me, ainda, com o seu poder mágico, quase divino, a possibilidade singular de criar, só para mim, um espaço de maravilhosa fascinação, neste mar africano.

Não vou pôr no mar, em seu lugar, um relâmpago, como fez Luís Miguel Nava. Os
relâmpagos são brilhantes, belos e poderosos mas, assustadores!
Também não vou pôr no mar, em seu lugar, um vasto campo de miosótis pequeninos e
azuis, onde eu pudesse dançar, solta e descalça, ao som de uma melodia belíssima,
fantástica, que o mar compusesse, só para mim, como fiz um dia!

Não! No lugar do mar, vou pôr um imenso mangal, transbordante de encanto e de romantismo, com flamingos cor-de-rosa, só meus, acácias em flor, só minhas e uma cascata imensa, cristalina, cheia de luz e brilho, a brotar, deslumbrante, entrelaçada numa vegetação magnífica, vestida de verde de mil matizes, também só minha!

Um mangal só meu, para me encantar, para me libertar, para me encontrar e nunca mais me perder! De mim!

E, eu, envolta em panos coloridos, artisticamente traçados sobre o meu corpo, modelando-o, com os meus novelos que escorrem beleza e magia, num delírio de cores e ofuscantes de luz, tricoto este mangal de fantasia, onde paira, provocante, o cheiro fresco mas, atrevido, das acácias em flor!

Já arrumei o meu texto tricotado, desajeitado, este meu tricot lento, com ponto incerto e malhas caídas!

MC

2 comentários:

José Almeida da Silva disse...

Nem sempre a realidade que nos entra olhos adentro é agradável! É mesmo, tantas vezes, dolorosa e contamina-nos, apesar da distância a que se encontra! E sofrer assim, obriga-nos a visitar a nossa memória grata! Não se gosta do contraste tão gritante. A solução, sabe-a muito bem a diarista que, tão bem, poetiza essa realidade e diz não a essas imagens que gritam espavoridas ao longo de tantas milhares de quilómetros, de continente em continente.

Gostei tanto deste tecido poético!

Continue a tricotar com palavras; o produto resulta num belíssimo texto.

Abraço de muita amizade

SC disse...

Tricotar com as palavras é uma arte inteligente que nos ofereceu mais um texto belíssimo!!!!