domingo, 15 de maio de 2011

Pedaços de mágoa e de espanto de uma menina gorda, que a anorexia devorou...

Estou confusa! Isto parece um velório! Isto é um velório! Há muitas rosas brancas, círios, uma Cruz enorme e uma urna a transbordar de seda e de tule!
Cheira a velas, a flores e a lágrimas.
Não sei porque estou aqui, neste velório.
Comigo, estão muitos colegas meus e muitos professores.
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Ninguém fala comigo. Parece que ninguém me vê! Que estranho...
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O que estará a fazer aqui, o meu irmão? Meu Deus, como chora!
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Deve ter sido alguém da Escola que morreu! Por isso, estou aqui!
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Ali, ao canto está o Miguel, o rapaz por quem me apaixonei, com o encantamento do primeiro amor e a insegurança dos meus dezasseis anos!
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Um dia, quando uns colegas nossos, nos viram juntos, disseram-lhe, a rir, que eu era perfeita, para ser sua namorada! A sua gargalhada escarninha, o olhar meio enjoado, meio piedoso que me lançou e o “Não!”, que lhe escapou, quase gritado, dos lábios, envergonharam-me e magoaram-me profundamente!

Eu era, na verdade e para meu infinito desgosto, muito diferente das outras raparigas, bonitas, soltas, esguias.
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O meu tio, irmão do meu pai, gostava de, às escondidas, me apalpar as mamas e as nádegas! Dias depois do claro repúdio do Miguel, o meu tio apanhou-me sozinha e amarfanhou-me contra a parede da sala com o corpo e, enquanto com uma mão me tapava a boca, com a outra mão, suada e viscosa, abriu-me o vestido e apalpou-me as mamas, as pernas , explorou todo o meu corpo enquanto dizia, com a voz enrouquecida, vermelho e com os olhos brilhantes de excitação: Que rica xixa!
Um barulho qualquer obrigou-o a soltar-me e eu fugi, a rebentar de raiva , de mágoa , horrorizada comigo própria!

Nunca, como nesse dia, me detestei tanto! Senti um nojo imenso pelo meu tio e também pelo monte de carne, que eu era! Que sou!

Nessa noite, despi-me e olhei-me, criticamente, ao espelho.
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Vi, com horror, a minha cara muito redonda, com bochechas balofas e luzidias, ,s meus braços fortes, muito roliços e as minhas ancas e pernas muito volumosas, flácidas, feias! Não tinha sequer cintura mas, um rolo carnudo, enrolava-se, à minha volta, como se fosse um cinto e começava a ter uma barriguinha que tremelicava de gordura! As minhas mamas, meio caídas, pareciam sacos mal ajeitados. Só ao meu tio, debochado e sujo, as minhas carnes, gordas e flácidas, podiam dar algum prazer!


Decidi, nesse momento, sozinha, no meu quarto, fazer uma dieta a sério!

Comecei a cortar na comida! O mais que podia!
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Fazia muito exercício físico, às vezes, quase até à exaustão! Agora, já não posso...
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Em meses, tinha perdido algum peso, continuo a perder peso mas, nunca deixei de me sentir pesada, inchada, enorme! Continuava, continuo gorda.
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Tornei-me hábil e manhosa!

Tomava, ainda tomo, medicamentos para não engordar, que me davam forças e energia mas, como não me ajudavam a emagrecer tanto quanto desejava, recorria, como recorro ainda, aos laxantes.

Agrada-me este controlo que tenho sobre mim e sabe-me bem a abstinência a que me forço! Gosto de me sentir limpa e vazia por dentro!

E, sobretudo, respiro aliviada porque, se antes fugia apavorada do meu tio, agora é ele que me evita e nem para mim olha! Apesar de ainda estar gorda, farta de xixa.

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Estudava muito e tinha notas muito altas! Queria ser a melhor, em tudo! Ultimamente, já não consigo! Estou muito cansada!
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Dizem-me que estou a perder peso em excesso e que já tenho os ossos quase à mostra e as veias salientes. Mas, eu continuo a ver-me pesada, enorme! Porque estou pesada e enorme! Por isso e para esconder os refêgos de gordura, que se vão amontoando, em mim, uso roupa larga!

Vejo-me ao espelho e sei que não tenho graciosidade nenhuma, nem encanto, nem leveza!
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Nos meus sonhos mais róseos, eu vejo-me linda, leve, deslizante, quase etérea, como uma sílfide! E, é assim, que eu irei ser! Um dia...!

Quando atingi os trinta quilos, internaram-me, no hospital!
Foi a maneira mais suave que os meus pais encontraram para me dizerem que não gostam de mim e estão fartos de me aturarem! Ninguém, aliás, gosta de uma rapariga volumosa, balofa e feia!
Dizem-me que tenho a pele seca e fina. Não é bem assim e eu esfrego-a muito bem, com sabonete, para que nem uma ponta de gordura me possa conspurcar!
Já não tenho menstruação há uns meses e os meus braços, pernas e costas estão cobertos de uma penugem, que, dizem, se chama lanugo, que eu escondo com a roupa larga que tenho de usar!
Parece que o meu cabelo está mais fino e muito menos farto mas, não é a pele, nem o cabelo, nem o lanugo, nem a amenorreia, que me preocupam!
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Os meus pais discutem muito, dizem que por minha causa.

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No hospital, tenho conhecido muitos jovens e alguns horrorizam-me porque persistem, teimosamente, numa dieta de que já não necessitam pois, são pele e osso, com os olhos enormes, nem sei se vazios ou, meio alucinados, os braços e as pernas cheios de manchas arroxeadas, e fazem-me lembrar aqueles meninos, completamente desnutridos, da Somália mas, sem as barrigas enormes, grávidas de nada, grávidas de falta de tudo!
Há uma rapariga, que me faz muita impressão, porque até cospe a saliva! Para não se sentir conspurcada!

Como se sentiriam eles se fossem, como eu, roliços e fartos de xixa, como diria o meu tio?

A vida no hospital, não é fácil! Querem que “façamos as pazes” com a comida! Não quero! Custou-me muito chegar aos trinta quilos e ainda tenho peso para perder! Não!

...

Nem o meu tio, nem homem algum irá jamais esfregar-se de gozo na minha carne!
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Apesar de, mesmo assim, ainda estar volumosa! A minha dieta não terminou!

Continuo no velório!
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Tenho de saber quem é esta “ela” de quem todos falam! E por quem tantos choram!
É tudo tão dolorosamente estranho...Sinto-me tão sozinha...
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Neste momento, entram os meus pais. Meu Deus, como estão diferentes, parecem ter
envelhecido muitos anos, os rostos exaustos, devastados!

...

Que angustiante é isto tudo! Parece que estou a viver a irrealidade paralisante de um tremendo pesadelo, do qual, por mais que me debata, não consigo acordar!

Indiferente às minhas carícias e à meiguice das minhas palavras, a minha mãe aproxima-se da urna e um rio de lágrimas desaba sobre quem ali descansa!
Por quem chorará, assim, tão aflitivamente, a minha mãe? O meu pai não chora, não se aproxima da urna, nem da minha mãe, que mal se segura de pé! Não fala com ninguém! Parece de pedra! Ali está, ao canto, tão cansado, tão desligado, tão ausente!

...

Aproximo-me da urna envernizada e olho, atentamente, para quem ali repousa. Vejo um pequeno volume, envolto em sedas e tules brancos, quase afogado em rosas brancas que se vão desfolhando com o calor e vejo um rosto emaciado, magro, a pele esticada sobre os ossos, as mãos esqueléticas, os dedos entrelaçados.
O rosto não me é estranho... Na verdade, é vagamente parecido com o meu... Mas, eu tenho a cara redonda com bochechas balofas e luzidias!
Sobre o rosto imóvel, de cera, ainda escorrem as lágrimas da minha mãe e parece que é a morta que chora!

De repente, lembro-me...
...

A Andreia deu-me, a meu pedido, uns comprimidos, daqueles que nos fazem sentir melhor. Tomei-os e adormeci!

...

Depois, senti-me cair... Pareceu-me ouvir vozes, muito ao longe, e o som, lindo, ciciado, do Bolero de Ravel que adoro e que ouço, incansavelmente!
Lembro-me de, nesse momento, me sentir muito bem! Relaxada, calma, liberta! Depois, mais nada...!

Surpreendida, compreendi, enfim!
Sou eu que, branca, imóvel e finalmente tranquila, descanso ali! A minha luta, sem quartel, contra o excesso de peso, contra a comida, contra a xixa acumulada do gozo excitado do meu tio, terminou!
Nunca mais, a manápula de um homem conspurcará o meu corpo!

Porque, serenamente, morri, esta madrugada!

Como diria Sartre, “ les jeux sont faits” ! Sinto uma imensa e fantástica indiferença descer sobre mim e afastar-me, irremediavelmente, de todos e de tudo!
Mas, estranhamente, não me importo!
Aprisionada, perdida, nos tentáculos poderosos, dessa gélida indiferença , esqueço os meus afectos, as minhas alegrias, os meus dramas e os meus medos! Numa absoluta solidão!

Para sempre...!

MC

6 comentários:

José Almeida da Silva disse...

Um belíssimo texto! A estratégia escolhida confere uma forte dramaticidade à narrativa. O título é muitíssimo expressivo.
Parabéns

A desalinhada disse...

Obrigada, pelas suas palavras, querido Amigo! Os seus comentários fazem-me tão bem, dão-me tanto ânimo! Fiz, ainda agora, umas ligeiras alterações, no texto. A escrita é mesmo assim, não é? Nunca, mas nunca, está suficientemente bem! Abraço grande e muita Amizade.

Cristal de uma mulher disse...

Eu adorei todo o texto. Muitas vezes a soma de cada ato vive suas etapas nas escolhas.
Um grande beijo

Pentacúspide disse...

bonito texto, dois assuntos sérios entrelaçados, ou três: a violação, o amor-próprio e anorexia. a maneira como as pessoas dão volta a essas situações são variadas, e a escolha da nossa amiguinha aqui não parece ter sido a melhor, não fincou os pés para enfrentar os problemas, em vez de olhar os outros nos olhos e confrontá-los com a realidade, preferiu olhar os seus próprios no espelho e esconder-se atrás de uma ilusão.
Gostei do tratamento. Boa escritora tu.

A desalinhada disse...

Obrigada, Pentacúspide, por me leres e por comentares o que vou escrevendo. Sabes, sou apenas uma diletante da escrita. Uma apaixonada pelas palavras.
Quanto à nossa menina gorda, as pessoas, especialmente, as mais jovens não sabem, muitas vezes, lidar com os seus medos, as suas inseguranças, as suas frustrações, os seus fantasmas. E, correm, correm, sozinhas e desamparadas atrás de fantasias loucas e de ilusões, como dizes. Abraço.

A desalinhada disse...

Obrigada, Pentacúspide, por me leres e por comentares o que vou escrevendo. Sabes, sou apenas uma diletante da escrita. Uma apaixonada pelas palavras.
Quanto à nossa menina gorda, as pessoas, especialmente, as mais jovens não sabem, muitas vezes, lidar com os seus medos, as suas inseguranças, as suas frustrações, os seus fantasmas. E, correm, correm, sozinhas e desamparadas atrás de fantasias loucas e de ilusões, como dizes. Abraço.