domingo, 14 de fevereiro de 2010

Ninho de vespas

- Não posso com aquela gaja! Aquela cabra, ali, toda vaidosa, com o casaco de peles! Que casaco horrível, tão esquisito! Já viste o carro novo dela? Topo de gama! Do melhor!
- Já vi, já! Mas o pior são as dívidas! Vive atolada em dívidas! Pelo menos é o que dizem, por aí!!!
- Não, isso não é verdade! Afinal esse boato das dívidas, que por aí correu, é mentira! O que ela anda, é metida com o nosso Director!
- O quê? Anda metida com esse palerma empertigado que cheira mal da boca? Não acredito!!!
- É o que te digo, menina! Nunca reparaste nos olhos de carneiro mal morto dele, quando olha para ela...?
- Ah! Coitada da mulher dele! Tão boa senhora! Velha e feia que dói, mas, tão boa senhora! Esta gaja é mesmo uma cabra sem vergonha! Eu já tinha ouvido falar num arranjinho entre ela e o pançudo do Administrador... Se calhar chega para os dois... Cala-te boca!!!
- Bem, mas lá bonita é ela! E veste bem! E fala bem, a gaja! Que raiva! Que raiva! Tenho-lhe um ódio de morte!
- Veste bem, vive numa mansão e tem um carro topo de gama! Pudera! Com o cornudo do marido, num alto cargo no banco, a receber balúrdios de dinheiro de salário, a fazer favores e a untarem-lhe as mãos, bem untadas, debaixo da mesa... Já sabes como é!!!
- Nem me digas...!
- Aquilo é só corrupção, menina!!! O marido deve ser tão bom como ela! E, os cornos, cá entre nós devem ficar-lhe bem, sei lá...!
- Uma vaca tresmalhada à solta é o que ela é!! E, francamente nem acho que seja assim muito bonita! E, está a ficar velha e mais gorda, já reparaste? Como profissional, coitada, é uma nódoa!
- Eu acho que ela não tem curso! O certo é que até aqueles burros baptizados, na Administração, andam com ela ao colo e tratam-na como uma princesa... Será favores que ela lhes faz, a todos, sei lá... Aquela perua ordinária, até me faz perder a minha alma...
- Shiu! Cala-te! Ela vem aí! Olá, querida, tudo bem? Estás cada vez mais bonita e jovem! Esse casaco é muito bonito e original, mas fica-te muito bem! Só a ti podia ficar, assim, tão bem!!!

MC (A Vespa - Animal repulsivo)

A pulga

Que irritação... que chatice... que coceira,
Senti, de repente, na noite!
Virei-me, revirei-me, sem conseguir sossegar,
Com as irritantes picadas, de uma saltitante pulga
Que corria contente, furtiva e lanceira
E, que eu tentava, em desespero, apanhar...!

Furiosa... mal disposta... já desperta,
Pois, bichinho danado, quem se julga?
Anda cá minha pulga descarada.. malvada,
Que hei-de, essa tua alegria, acabar...!

Que irritação... que chatice... que coceira,
Que noite mal dormida... que maçada!
Só consegui sossegar e, de novo, adormecer,
Quando, enfim, ficou quietinha...
Reduzida a nada, pobre pulga importuna,
Entre as minhas unhas, esmagada...

MC (Animais importunos)

Uma vida em quatro tempos

Nasci pouco antes da hora de jantar e, minha avó estava de cama com um resfriado que a levou para a cova, poucos dias depois.

Cresci como um pequeno príncipe, numa casa rica, onde nunca nada me faltou, a não ser o amor e a carinhosa atenção que nos encouraçam, desde o berço, para as agruras e os espantos da vida.
Meu pai morreu, de repente, quando eu tinha sete anos. Meu tio, irmão do meu pai, tomou-me à sua guarda e levou-me para a sua casa, um palacete, no centro da vila, onde vivi rodeado de amas e de criadas. A minha mãe continuou na nossa casa, que era ali, mesmo ao lado. Dela, recordo a sua beleza fresca e os bonitos vestidos que eu não podia sujar ou amarrotar, com os meus abraços desajeitados de menino vagamente assustado. Não tive irmãos ou irmãs e, posso dizê-lo, fui sempre uma criança solitária e triste.
Nunca percebi porque não fiquei, na nossa casa, com a minha mãe, assim como não percebi o relacionamento forma, ldela com o meu tio, se, no dia em que o meu pai morreu, os vi correr, num alvoroço, um para o outro, abraçarem-se ternamente, a minha mãe a chorar e ele a cobrir-lhe o rosto bonito e fino, de trémulos beijos!
Estava destinado, eu ir para a academia militar. Recusei firmemente. Aos dezasseis anos, mandaram-me para um colégio interno. A minha mãe continuava bonita e airosa, mas sempre ligeiramente distante e fria. O meu tio tratava-me com cordealidade, preocupava-se comigo, mas nunca me dava um abraço ou, me estendia a mão, num gesto, visível, de afecto.
No momento delicado, do despertar da minha sexualidade, o Armando, meu companheiro, no colégio, apaixonou-se por mim e eu deixei-me envolver na doçura morna daquele amor, que suavizava e aquecia a minha alma gelada e seca.. Vivemosa história de um amor clandestino e proibido, que o Armando estava pronto a assumir mas, que a mim, me estarrecia. Assim, aquele foi sempre e apenas um amor idealizado, terno e cauteloso, como eu queria que fosse! Um amor fortalecido por uma completa entrega, da parte dele, que marcou a minha vida, árida de afecto, de ternura e de partilha!
Fomos juntos para a Faculdade e a minha sexualidade, fervilhava, inquieta, numa tremenda e avassaladora, confusão, de sentimentos, de incertezas e de medo! Quando terminámos o curso de Economia, decidi, ainda não sabia bem, se dobrado ao peso castrador das convenções sociais ou, se realmente porque as mulheres me começavam a interessar, que, na minha vida, o Armando não podia ser mais do que um amigo! Um amigo querido, é certo, mas apenas um amigo! Disse-lhe, sem rodeios, brutalmente, que os olhares cúmplices, as suas incontroláveis carícias, a terna solicitude dele para comigo, tinham de acabar! Aterrava-me a ideia que aquele seu amor arrebatado, transbordasse e fosse descoberto! O Armando gritou, chorou, insultou-me, suplicou e revoltou-se!

No dia que fiz vinte e cinco anos, o Armando suicidou-se!,
E, eu nunca lhe perdoei a insensatez do seu desesperado gesto; nunca lhe perdoei ter-me deixado mais só e mais triste do que nunca; nunca lhe perdoei esta dor que se agarrou a mim, como um limo maldito, viscoso, aferrado a mim, por não o ter amado como merecia; nunca lhe perdoei a minha infinita mágoa e o meu doloroso remorso pelo meu egoísmo, pelo meu medo!
Fui uns anos para os Estados Unidos, mais exactamente, para São Francisco, onde vivi intensamente e onde fiz uma valiosa pós-graduação. Sentia-me profundamente mal comigo mesmo e a saudade viva, cada vez mais forte, do Armando, torturava-me! Compreendi, tarde demais, que o amava muito mais do que tinha querido admitir!
Quando regressei ao país, assumi o controle da empresa do meu tio! Uns anos depois casei com a Teresa e tivémos três filhas. Casei e tornei-me um homem , como mandam as regras, de uma sociedade preconceituosa e hipócrita! Tão preconceituosa e hipócrita como eu, ao vestir a pele de um marido tranquilo, amado e amante, que nunca fui, e de um pai carinhoso e interessado, que me esforcei por ser!
Descobri, depois de casar, que a Teresa era uma mulher difícil, quesilenta e sem sentido de humor. O nosso casamento, aparentemente feliz, era continuamente agredido por tremendas discussões, que me deixavam esgotado, e abalado pelas abomináveis birras e os patéticos queixumes da minha mulher.
Fiz vários cursos de actualização no Reino Unido e na Alemanha. Ganhei muito dinheiro, perdi algum, viajei, joguei no casino, tive aventuras amorosas, sem consequências. Enfim, eu era o que se pode chamar um homem do mundo. Por isso, também, muitas vezes me cansei e me aborreci! Mas, nunca, houve um dia, em que não recordasse o Armando. Com o passar dos anos, tornei-me mais fechado, mais irascível e fui ficando cada vez mais zangado comigo e com a vida.

Aos cinquenta anos, fiz uma incursão no mundo da política, como assessor do ministro das Finanças. Foi uma experiência muito intensa, trabalhosa, mas muito interessante! Que não quis repetir, quando o mandato acabou!
Um ou dois anos depois, no dia do casamento da filha de um amigo, conheci-a! E, vi-me, pela primeira vez, num estremecimento de alma, como um adolescente ansioso e perplexo, entre a emocionada magia do enamoramento e o infinito abismo da paixão.
Este foi outro amor puro, platónico, mas forte, sob a forma de uma suave amizade, porque éramos ambos casados. Ela era uma mulher uns três anos mais nova do que eu, bonita, azougada e doce, que me encantou e me prendeu! Amei-a, com todas as forças da minha alma!
Nunca tive coragem de lhe falar no turbilhão incandescente, que se agigantava dentro de mim, porque sabia que jamais teria coragem de destruír a ordem social, estabelecida! Pelo contrário, afastei-me dela, perdi-a e perdi-me! Para me defender daquela paixão inesperada e febril, mas perigosa e transgressora, zanguei-me com ela sem razão e desorientei-a, com o meu distanciamento forçado e pretenso cinismo!
Ela julgou-me cruel, quando eu estava a ser cobarde! Ela pensou ver, em mim, um desinteresse e uma raiva, que nunca senti, quando o meu coração explodia de amor e de ansiedade! Ela viu-me voltar-lhe as costas, como um tolo arrogante, só porque eu não podia enfrentar a claridade pura do seu olhar, morto de ódio e de ciúme de todos os que a rodeavam! Ela sentiu-se traída e ignorada, quando eu apertava os punhos até doer, no fundo dos bolsos, só para não correr para ela e apertá-la, à frente de todos, num infinito abraço!
E, por ela, com ela na alma, conheci a exaltação, o ciúme, a alegria, a tristeza, o ódio, arroubos dourados de esperança e o desespero!
Mais uma vez, para não abalar as solenes convenções sociais , desisti dela! Preferi, em nome da mais triste cobardia, chafurdar, na mais dilacerante amargura, na mais negra frustação! E, reconheci o gosto amargo da renúncia!
Nunca mais a vi. Fui, durante anos, a almoços, a jantares, a reuniões e até a funerais, onde pensava poder encontrá-la! Só para a ver! Só para poder mergulhar, por instantes, o meu olhar turvo e desassossegado, na luz clara e serena do seu olhar! Só para respirar , nem que fosse por momentos, o mesmo ar que ela! Mas, nunca mais a vi! Fechei-me ainda mais em mim e sei que me fui tornando, cada vez mais irascível, mais zangado com tudo e com todos! Mas nunca, nestes anos todos, se passou uma noite que eu não adormecesse, a pensar nela!
Entretanto, adoeci gravemente e fui submetido a uma delicada cirurgia. Nunca mais, desde então, fui o mesmo homem forte e enérgico que era! Mas, nem a minha doença suavizou o azedume da minha mulher.

Tenho setenta e cinco anos. Continuo casado com a Teresa. Uma Teresa mais quesilenta, mais mal disposta, cada vez mais gorda e mais insuportável! Mas a verdade é que fui eu que escolhi continuar a esbracejar nesta vida, feita de discussões, de zangas, de mágoas e também de cansaço e de uma profunda indiferença! Sim, porque creio que já é por hábito, que continuamos juntos, que nos odiamos e discordamos tanto!
As nossas filhas seguiram o seu caminho. E, tenho, hoje, a medonha, a frustrante sensação que não tenho nada!
Estou doente e não me resta muito tempo! Olho para trás e sinto que fiz quase nada, da minha vida! Fui um menino carente, solitário e triste; fui um jovem egoísta, solitário e triste; fui um homem acomodado, solitário e triste; sou um velho doente, amargurado, solitário e triste! Fui sempre fraco, solitário e triste!
Mas, apesar de tudo, o Armando e ela aqui permanecem comigo, hoje, e nos dias que me restam, como duas referências poderosas e ardentes! Eles foram duas vagas imensas, cristalinas, arrebatadoras e perturbantes que me inundaram a vida de paixão e de amor mas, nas quais, não eu soube, não ousei mergulhar, abandonar-me e perder-me!

Tenho cinco netas. O meu primeiro neto nasceu ontem, pouco antes da hora do jantar e eu ainda não o vi porque, estou de cama , há uns dias, com um resfriado que me tolhe...

MC

Naquela noite densa e escura...

Não sabia como tinha ido parar ali. Saíra da estrada, e estava, agora, num carreiro estreito, rodeado por uma mata escura de árvores e de arbustos altos. À esquerda, espreitava um lago negro e baço.
A noite estava escura e densa.
As ramagens das árvores farfalhavam inquietas, soluçando mágoas e desfiando pecados velhos, feios, malditos, e o vento percorria o carreiro e acariciava as árvores e os arbustos com frémitos de amante, doido e meigo, e gemia melopeias, mil vezes repetidas.
O lago negro, parado, parecia um polvo adormecido, ameaçador, na sua aparente quietude!
Pareceu-lhe sentir a presença de alguém e julgou ouvir passos leves, abafados, furtivos mas depressa percebeu que, o que ouvia, eram as batidas fortes, desritmadas do seu coração!
Estava sozinho, perdido, vulnerável, naquele recanto desconhecido!
Sombras corriam pelo carreiro, emaranhavam-se por entre as árvores negras a segredarem, entre si, uma urdidura velhaca de intrigas e de enredos, e serpenteavam até ao lago, como cobras coleantes, esquivas, traiçoeiras.
A sensação inquietante de uma presença, apenas pressentida, mas que se impunha, dominadora, perturbava-o!
Subitamente as águas estagnadas do lago pareceram revolver-se, como se tivessem despertado de um torpor longo e doentio e, por momentos, coberto de suor, ele imaginou tentáculos monstruosos, pegajosos e fortes como tenazes, a emergirem e a estenderem-se, malignos, até si.
O pio lúgubre do mocho despertou a noite, com o seu queixume triste!Ele estremeceu e, aquele ambiente pesado e misterioso, lembrou-lhe as cartas! As cinco cartas de um amor alarmado pela ameaça do abandono perpétuo que, desde sempre, o tinham fascinado e que iria abordar, na conferência, no dia seguinte!

Cinco cartas latejantes de paixão, carregadas de lágrimas e de cansados suspiros que o coração e o corpo saciados do outro, nunca tinham sabido entender!
Aquelas cartas, pensou, com emoção, sendo um precioso e delicado luzeiro literário, tinham, na sua pungência, eternizado um amor! Um amor pecaminoso, condenado, ardente de insaciável desejo, vivido em noites assim, como aquela, densas, escuras, atravessadas de mistério e de sombras! Mas também noites apaixonadas, libidinosas, carregadas de fascínio e de luxúria!
São cartas desorganizadas, escritas num frenesim, à toa, sem pensar, que não seguem preceitos ou normas, que não obedecem a regras de moral ou de gramática, com a dignidade a querer sofucar o amor ou, talvez, com o amor a querer estrangular a dignidade!
Encolheu, ligeiramente, os ombros, descontente. Consigo próprio!
Ali estava ele, o professor exigente, o crítico temido, o poeta inquieto, o escritor insatisfeito...
Não! Se aquelas são cartas desorganizadas, irreflectidas, desvairadas, é porque, mais do que cartas, são retalhos de alma, são golfadas de dor, são cintilações de luz, são poços, sem fundo, de sombra funesta!
Por isso, porque elas são fruto de um amor fremente, enredado nas teias geladas do abandono, são desgrenhadas, impetuosas, contraditórias! São cândidas e lascivas! São luminosas e turvas! São ternas e coléricas! São líricas e trágicas!
E, só ela, perdida a esperança, à medida que a dor crescia e se agudizava, tomando o vulto de um temporal desfeito, medonho, podia ter escrito, saudosa, tresloucada: “Amo-te mil vezes mais do que a própria vida, e mil vezes mais do que imagino.”

E, o pio magoado do mocho cortou, de novo a noite, cada vez mais escura, cada vez mais densa! As ramagens das árvores e os arbustos altos confiavam, ainda, ao vento, inconfessáveis segredos e urdiam, entre si, tramas caluniosas, crueis. No lago, agora, uma bolha negra e gordurosa, ele pressentiu os monstros horrendos que ali se revolviam, e ameaçavam prendê-lo nos seus miasmas letais.
“Os meus medos!” pensou. "São os meus medos sombrios, viscosos, danados, que me torturam e que me envenenam que ali sinto, enleados num novelo maléfico, sem princípio, nem fim!”
E, o pio lancinante, do mocho a ecoar, longamente, na noite velha e gasta, e a fazer doer... a fazer doer a alma!

E, a presença, aquela presença assustadora a impor-se! Invisível, persistente, poderosa! Cada vez mais próxima!

Então, trémulo, num arrepio de susto e de espanto, viu, à sua direita, a figura diáfana de uma rapariga vestida de branco. Tinha os longos cabelos em desordem, os fartos cachos de caracóis dourados a desfazerem-se, lânguidos, sobre os ombros. No rosto branco e fino, luziam os olhos grandes, verdes, transfixos.
Estática, muda, pálida, com os braços caídos ao longo do corpo ela era um frágil ponto de luz, uma suave emanação de brilho, no negrume profundo da noite!
Ele olhava para ela, emudecido, num assombro!
Ela, calada, branca e loira, branca e fria, atravessava-o com o olhar!

Submerso num mar de terror e de náusea, com a voz presa na garganta, ele tentou respirar fundo e tossiu ligeiramente.
Ela pareceu não o ouvir e voltou-se devagar, silenciosa, quase transparente...
Num impulso, antes que se ela perdesse na mata negra, ressumante de suspiros e de lamentos, ele perguntou, agora, aos borbotões, numa ansiedade estranha, tão estranha como aquela estranha noite: “ Como se chama?”
E, ele nunca soube dizer se foi a rapariga que, num murmúrio, falou, se foram as ramagens das árvores que, docemente, sussurraram, se foi o lago que, cansado, gorgolejou ou, se foi o pio dolorido do mocho que, nesse instante, quebrou o silêncio enfeitiçado, daquela noite singular, e que, plangente e grave, respondeu:

Mariana!

Nota: Como o macaco é um exímio imitador, também os humanos usam e, às vezes abusam, dessa sua capacidade de imitar!
Assim sendo, vesti uma pele que não é a minha e escrevi este texto, a imitar um escritor ultra-romântico.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O macaco de pedra


Havia numa planície do Oriente, uma rocha que, desde que o mundo fora criado,se deixava banhar, feliz, pelos raios da lua e do sol. Um dia, essa rocha inchou,inchou, entreabriu-se, e deu, ao mundo, um ovo de pedra. Esse ovo foi assolado por um furacão e rebentou. Dele, saiu um macaco de pedra.
O macaco possuía cinco sentidos: a visão, a audição, o olfacto, o paladar e o tacto. Os seus movimentos, porém, eram lentos. Depois de muitos alongamentos, ele conseguiu dirigir-se aos quatro pontos cardeais, alimentando-se dos frutos das árvores e da água das torrentes. Mais tarde, foi morar para as montanhas, dormindo, à noite, nas baixas vertentes e, durante o dia, voltando ao cimo. Fez amizades com outros macacos, os gibões.

Um dia de muito calor, o macaco foi até um bosque de pinheiros, em cujo centro, havia uma cascata, profunda e fresca; os gibões acompanhavam-no. Ao ver a água tão pura, tão cintilante, o macaco decidiu mergulhar nela a fim de procurar a nascente e medir a sua profundidade. Primeiro, mergulhou o macaco de pedra, visto que seus camaradas haviam decidido eleger Rei, aquele que descesse ao fundo da ondulante cascata... Ao chegar ao fundo, o macaco abriu os olhos. Não havia água, nem cascata; havia apenas um palácio onde estava escrito: “Monte das flores e dos frutos, terra da felicidade, caverna celeste”.

O macaco apressou-se a emergir, em busca dos demais macacos, a fim de lhes explicar o que havia descoberto no fundo da cintilante cascata. Os gibões, muito felizes, dançaram de alegria. O macaco de pedra, porém, disse-lhes: “Vamos morar no palácio; lá estaremos ao abrigo do sol e da chuva”. Todos mergulharam e tomaram posse do palácio da felicidade. O macaco de pedra instalou-se num trono e fez com que o aclamassem Rei, conforme fora combinado. Foi nomeado “O Perfeito Macaco-Rei”.

Mas, apesar da glória de soberano, apesar de ter acumulado riquezas e poder, o Macaco-Rei vivia melancólico. Temia a velhice e a morte.

Decidiu, um dia, partir em busca da imortalidade - iria ao mais fundo das cavernas, ao azul do céu, cavalgaria ao vento. No decorrer dessa busca, seu corpo e seu espírito pouco a pouco foram-se modificando e ele acabou por se tornar homem.

O macaco e a lenda

MC

sábado, 9 de janeiro de 2010

Orion e o escorpião




Conta-nos a lenda que Artemísia, apesar do seu voto de castidade, apaixonou-se perdidamente pelo jovem Orion, dispondo-se a renunciar à sua aura de deusa mais casta e mais pura, entre todas as deusas do Olimpo e a casar com ele.
O seu irmão gémeo, Apolo, enciumado, decidiu impedir o enlace mediante uma grande perfídia: quando estava numa praia, na companhia da irmã, desafiou-a a atingir, com a sua flecha, um ponto negro que mal se distinguia, à tona da água, devido à grande distância. Artemísia, exímia caçadora, vaidosa da sua perícia, prontamente retesou o arco e atingiu o alvo, que imediatamente, desapareceu no abismo do mar, fazendo-se substituir por uma espuma alterosa e ensanguentada. Era Orion que ali nadava, fugindo de um imenso escorpião criado por Apolo para persegui-lo, conduzindo-o, assim, para os confins do oceano.
Ao ter conhecimento da trágica morte do amado, às suas próprias mãos, Artemísia, inconsolável e desesperada, conseguiu, do pai, Zeus, que a vítima e o escorpião fossem transformados em constelações, para sempre vivas, no céu.
assim, quando a belíssima constelação de Órion se põe, a constelação de escorpião nasce, perseguindo-a sempre, cegamente, mas sem nunca a alcançar.

Os Bichos na Mitologia

MC

O sonho de Artemísia

Era uma manhã de verão e o sol parecia fazer desabar toda a sua preciosa carga de ouro, na pequena cascata que descia ondulante e formava, no solo, um pequeno lago, como uma concha de água cristalina, circundada de verdura, num recôndito do bosque.
O sol abrasava e Artemísia, a deusa da serena luz do luar, que por ali passava, acompanhada das suas ninfas, decidiu banhar-se na concha, onde a cascata se desfazia em espuma.
As ninfas despiram-lhe a túnica, descalçaram-lhe as sandálias e ela mergulhou, devagar, o corpo finamente esculpido, flexível e fresco, como a haste de uma flor em botão.
Acteon que se perdera, quando andava à caça, com a sua matilha de cinquenta cães, passou por ali, viu-a e ficou paralisado, perdido num êxtase quase místico, perante aquela deslumbrante criatura no banho, escondido, pelas sebes cerradas, verdes e lustrosas.
Artemísia, porém, apercebeu-se do intruso e, enraivecida pela ousada profanação dos seus virginais mistérios, preparava-se para chamar as suas ninfas, quando uma estranha dormência, um quebranto desconhecido a fez reclinar-se na relva que bordava a orla daquela taça de água translúcida.
A deusa adormeceu profundamente e sonhou...

No sonho, ela dirigia-se para aquele mesmo recanto ermo e verdejante do bosque, o sol a escaldar e a fazer desabrochar mil perfumadas corolas, nos jardins, ansiosa por banhar o seu corpo sequioso na concha cristalina, que se aninhava aos pés da cascata e onde a água cantava, recolhida entre arbustos, chorões, carvalhos e nogueiras ramalhudas.
Dois velhos que por ali passavam, curvados, feios, a pele amarela a cheirar a ranço e a penas de frango, os olhos esbugalhados, detiveram-se, boquiabertos, a espreitá-la, na sua esplendorosa beleza nacarada, que uma túnica alva e transparente, revelava mais do que cobria.
Ela, a casta Artemísia, rainha da serena luz, dos bosques, dos bichos e infatigavel caçadora, aproximou-se da cascata, sem se saber despida, devassada por aqueles olhos lúbricos, de pálpebras pesadas e descaídas que percorriam e quase apalpavam, excitados, o seu pescoço de garça, os seus seios perfeitos e firmes, o seu ventre liso, as suas coxas macias, a sua pele de cetim, que deus ou homem algum jamais vira.
Os velhos, os olhos arregalados, a boca torcida, num arreganho de volúpia, fosforejavam, babados, como lobos gulosos, à vista da ovelha sem pastor.Por entre os arbustos, eles observavam-na, num frenesim de luxúria e de imunda concupiscência.

(E, Artemísia, revolvia-se, angustiada, no sono).

Quando, depois de mandar retirar as ninfas, a deusa deixou cair a túnica e ía meter o pé descalço, na água cristalina, os velhos enlouquecidos de desejo, perante a sua radiosa e sensual nudez, arremeteram, para ela.
Com um grito abafado de susto e de vergonha, Artemísia tentou cobrir-se com a túnica, que pouco ou nada escondia, e dispos-se a chamar as ninfas. Os velhos, contudo, exaltados como bichos com cio, tentavam agarrá-la, com as suas mãos aduncas, ásperas, nojentas, e exigiam, babosos, num desvario, que se deixasse tocar e possuir, por eles, sob a ameaça de a acusarem de ser uma libertina, à solta pelos bosques, e de declararem terem-na surpreendido, numa cópula vergonhosa e desenfreada, com um rústico pastor, maculando, assim, para sempre, a sua auréola de sublime castidade, entre as deusas do Olimpo.
Artemísia, entretanto, ía fugindo do toque infame daqueles velhos lascivos, putrefactos e túrgidos, perdidos, naquele estranho sonho/pesadelo, os seus dons de deusa poderosa e caçadora exímia! Mas, mesmo vulnerável, indefesa, despojada da sua aljava de prata, ela ainda era a casta Artemísia que jamais se deixaria subjugar, que jamais deixaria destruír o odor de castidade que era o dom mais precioso da sua essência e gritou, gritou, aflita, por auxílio!

(E, a deusa agitava-se, convulsa, no sono inquieto.)

Acorreram, num espanto, as ninfas e os duendes. Os velhos furiosos, declararam, então, sobranceiros, com meio-sorrisos cínicos e olhares cúmplices, terem-na visto, ofegante e ébria de prazer, numa louca orgia dos sentidos, nos braços grosseiros de um pastor qualquer.

E, essa repelente difamação espalhou-se, como um incêndio e fez tremer o Olimpo!

Zeus foi chamado a intervir!. Artemísia, a deusa da serena luz, prateada, do luar, pálida, morta de vergonha e de desespero, esperava que se fizesse justiça. Apolo, seu irmão gémeo, olhava-a, atónito e enciumado. Mais tarde, iria, sem misericórdia, destroçar o coração da irmã, levando-a, com uma artimanha pérfida, a matar, ela própria, o amor da sua vida, Orion. Mas, essa é outra história, que não pertence a este perturbante sonho.
Zeus, com a filha a seu lado e com a sabedoria própria de uma divindade, decidiu falar com os velhos, em separado.
Imponente e severo, perguntou ao primeiro onde vira a deusa a copular com o pastor e ele disse, afoito e mau, que tinha sido debaixo de um chorão, cujas ramagens fartas e pendidas até ao solo, teriam escondido tão reles acto, não fossem os gemidos altos e a respiração opressa dos dois. Num salto temporal prodigioso, num outro tempo e num outro espaço, o chorão iria ter o seu momento de glória, quando, segundo a lenda, escondeu uma jovem mãe e o seu filho, Jesus, na fuga para o Egipto. Mas, essa é também outra história, que nada tem a ver com este aflitivo sonho.
Feita a pergunta ao outro velho, ele respondeu, maldoso e seguro de si que tinha visto a deusa e o rude pastor no debochado abraço, debaixo de uma nogueira. Nesse mesmo salto temporal, segundo a lenda, a madeira dessa árvore iria servir para crucificar, barbaramente, um homem bom e justo, esse mesmo Jesus, que o chorão protejera e salvara, anos antes. Mas, essa é outra história, também sem cabimento no sonho terrível, sofrido de Artemísia.
Então, Zeus, desencadeada a sua ira, trovejou aos dois velhos: “ Que as vossas mentiras sejam a vossa eterna condenação a um excruciante sofrimento, no Hades!” E, a um golpe do seu portentoso raio de fogo, os dois velhos tombaram a seus pés.

(E, a deusa da serena luz, saciada a sua sede de justiça, sorriu, tranquila, no sono).

Com a respiração descontrolada, mal refeita daquele sonho/pesadelo, Artemísia abriu os olhos e descortinou Acteon, ainda escondido, atrás das sebes, simultaneamente, surpreendido com a dolorosa inquietação no sono, de tão delicada criatura, e estático, irremediavelmente, preso ao encantamento da sua arrebatadora beleza!
Furiosa com aquela ousadia que a profanava, Artemísia aspergiu-o com a água onde se banhava e transformou Acteon num cervo, no meio de gritos e de lamentos pois, cada osso, cada músculo transformava-se, alongava-se ou retraía-se, com dores lancinantes.
E, indescritível foi o seu sofrimento e o seu horror ao sentir as mãos e os pés endurecerem e tomarem a forma de cascos e na cabeça crescerem chifres!
Os seus cães que por ali andavam, já famintos, ao verem aquele cervo grande, carnudo e tenro, correram, alucinados, atrás dele.
Acteon tentou chamá-los pelos nomes, suplicar-lhes que parassem, mas era, agora, um bicho! Não tinha voz! Ainda os sentiu abocanhá-lo e começarem a rasgar as suas carnes. Os cães comeram-no vorazes e lamberam, deliciados, o seu sangue, sem saberem que era o dono, respeitado e querido que, gostosamente, devoravam.

Diz-se que, ainda agora, os cinquenta cães de Acteon, nas noites prateadas pela serena luz do luar, uivam saudosos e vagueiam, por montes, por matas e por vales, incansavelmente, desesperadamente, à procura do dono!

MC