Quando a Ira e o Ódio se defrontam...
Ela sentiu a porta de casa abrir, para logo se fechar com violência. Sentiu, com um arrepio, que ele estava, outra vez, mal disposto, zangado. O cheiro pútrido da sua ira que, como um polvo, parecia estender os tentáculos por toda a casa, procurando-a, maligno, para a prender e oprimir, atingiu-a, ainda mesmo antes de a encontrar, como uma pedra de fogo.
Respirou fundo e tentou sossegar o coração que disparara e batia forte e incerto, provocando-lhe uma aflitiva falta de ar. Teve medo!
Mexeu a sopa e começou a cortar o tomate, em fatias finas, para a salada. Não se voltou quando ele entrou na cozinha, infectando, tudo em seu redor, com os miasmas pestilentos, contaminados, da sua ira maléfica, que ela tão bem conhecia!
Onde estavas? Telefonei duas vezes, não atendeste, onde estavas?
Calada, continuou de costas para ele, a cortar fatias finas de tomate, com as mãos a tremer, quase sufocada.
Olha para mim e responde!
Ela voltou-se devagar, como em câmara lenta, a faca esquecida na mão e olhou para ele. Encolheu-se!
Aterrorizada, viu diante de si, aquele homem alto, forte, com os olhos brilhantes, raiados de sangue, um olhar duro e frio, como de uma serpente, o rosto alterado e uma veia grossa, como uma corda, a latejar na testa. Aquele homem que era, desgraçadamente, seu marido.
Fui à mercearia, respondeu , num sussuro.
À mercearia? Assim, tão bem arranjada? O que foste fazer?
Sem esperar pela resposta, aproximou-se dela, de um salto e esbofeteou-a! Atingiu-lhe o nariz, o sobrolho esquerdo e o lábio. O sangue jorrou! De cabeça perdida, agarrou-a pelos cabelos e bateu-lhe outra vez. Na mão, ficou-lhe um punhado de cabelo loiro, deu-lhe um empurrão brutal e ela caiu desamparada. Gritou e urinou-se quando ele lhe deu um pontapé impiedoso, nos rins!
Ali ficou, deitada no chão, vulnerável, cheia de dores, esgotada. Como de costume, ele falou, falou, gritou, como um demónio, a contorcer-se, num inferno de fogo e de ira! E, como sempre foi irónico, foi sarcástico, foi insultuoso! Foi malévolo e foi cínico!
Mas, ela não o ouvia!
Caída no chão, num repentino flashback, reviveu doze anos de agonia e de calvário! Doze anos de casamento, amassados com lágrimas, sangue, medo!
Recordou todas e cada uma das pancadas, dos pontapés, dos empurrões; recordou, com mágoa, o sofrimento dos dois abortos que sofrera, das humilhações e do constante terror que lhe enegrecia os dias!
Estarreciam-na aquelas frequentes e súbitas explosões de uma ira terrível, violenta, incontrolável, por pequenas coisas e, às vezes, que ela soubesse, por nada, seguidas de uma calma doentia, de uma quietação estranha que sempre a assombrara e de intoleráveis carícias e rudes manifestações de afecto que, geralmente, acabavam em longas sessões de sexo que a enojavam, vilipendiavam e eram uma torturante violação para o seu pobre corpo espancado!
Mas, como ele dizia depois, com um risinho lúbrico e maligno, excitava-o, irresistivelmente, senti-la assim frágil, cansada, submetida a si, aos seus mais loucos desejos!
Nunca ninguém a ajudara, nem a família, que não acreditava, ou fingia não acreditar, nos inenarráveis ataques de ira, daquele bom homem, como eles diziam, nem a polícia a quem, uma vez, para nunca mais, ousara apresentar queixa.
O agente destacado para levantar o auto, exigira que ela relatasse tudo, com todos os detalhes e ouvira-a, indiferente, como quem faz um frete, mas, com um leve sorriso canalha e o olhinho lascivo que a despia. Enfureceu-se, envergonhou-se, arrependeu-se! No fim, com um olhar velhaco para o colega do lado, o agente disse-lhe que veriam o que se podia fazer.
Já em casa, sozinha, com medo de represálias e de lhe despertar, mais furiosamente, a ira, não dormira nessa noite e retirou a queixa no dia seguinte!
Estava tão farta, tão exausta, tão desesperada!
De repente, esquecidas as palavras, ele perdeu-se no silêncio frio da cozinha e aquietou-se. Ainda caída no chão, ouviu-o dizer, nessa quietação estranha, que nunca deixara de a assombrar:
Levanta-te, amor! São horas de jantar. Sabes que te amo. Olha para mim! Levanta-te!
Limpa o sangue do teu corpo! Isso não é nada!
Casámos há doze anos e vamos ficar juntos para sempre! Eu só quero proteger-te! Sabes, querida, detesto que me contraries e teimes em não fazer as coisas, como eu gosto! Tens de aprender a satisfazer os meus gostos, a obedecer às minhas ordens! É assim tanto e tão difícil o que te peço?
E, com um olhar carregado de sensualidade, continuou:
Estás cada vez mais bonita, perfeita e desejável! Ah! Como és desejável e como eu te desejo!
Mas quem és tu sem mim? Uma qualquer, para aí, na rua.! Não quero isso para ti, amor! Lembra-te, só quero o teu bem!
Anda, levanta-te! Limpa o sangue do teu corpo, vá! São horas de jantar. Serve a sopa!
Este homem é doido, pensou. Tanto tempo, sozinha, nas mãos de um louco!
Estava farta daquele rosto, agora tranquilo e doce, como o de um noivo, mas, ainda há pouco, medonho, congestionado, contorcido; tinha medo daqueles olhos brilhantes, raiados de sangue, irados, que pareciam expedir chispas de fogo; enojava-a aquela boca que se abria, agora, num arreganho, a imitar um sorriso e onde, não há muitos minutos, os dentes escorriam ira!
Encolhida no chão, sentiu-se suja, humilhada, corrompida pela ira, pela loucura maldosa, pela irracionalidade daquele monstro!
A seu lado, sob a saia, sentiu a faca.
Levanta-te, anda! Está a fazer-se tarde para o jantar!
Ela levantou-se, devagar, a faca na mão, escondida nas pregas da saia.
A expressão dos teus olhos mete medo! Que tens? Não me provoques! Tem juízo! Anda, serve a sopa! Depressa ! Tenho fome e apeteces-me, depois, amor! A minha sobremesa predilecta és tu, sabes?
Uma vaga imensa e negra, de ódio, há tanto tempo acumulado, inundou-a e quase a submergiu, cegando-a!
Como uma sonâmbula, dirigiu-se a ele.
E, de repente, o dique que continha o seu ódio, um ódio vivo, que fora crescendo, crescendo, fortalecendo-se e refinando-se, ao longo do tempo, como um vinho especial, raro no corpo e no travo, cuidadosamente envelhecido, esse dique que barrava a sua repulsa, a sua raiva, o seu nojo, rompeu-se fragorosamente e, com um grito, arrancado do mais profundo das suas entranhas, do mais íntimo do seu ser, ela enterrou-lhe a faca no ventre.!
Uma vez... duas vezes... três vezes...
Umas facadas mais fundas, outras mais superficiais mas, todas temperadas com o ódio acerado, com o infinito desespero e com o terror sufocante, vividos, durante doze anos de amargura!
Agora, era ele que estava caído no chão, um corpo torcido, grotesco, com a expressão de um imenso espanto, na cara, agora branca como a cal, os olhos frios de serpente, já meio-opacos e, por fim, quieto, enfim, calado!
Com o rosto cheio de sangue, o olho esquerdo tão inchado, que não abria, uma dor excruciante a tolher-lhe os rins, toda urinada, o corpo dorido das pancadas, do empurrão brutal e da queda, ela ali estava, de pé, a ouvir, não as ironias baratas, não os sacasmos torpes, não os insultos gratuitos mas, o estertor cavo, aflitivo, horrendo, da morte. Ali ficou, serena, imóvel, a vê-lo morrer devagar, numa agonia lenta, como um animal feroz, danado, finalmente, abatido, subjugado, submisso!
A seus pés!
E, ela, pela primeira vez, em tantos anos, livre, apaziguada, tranquila, senhora de si, senhora do seu destino!
Fosse, qual fosse o seu destino!!!
MC
( A Ira - Pecado mortal)
Sem comentários:
Enviar um comentário