terça-feira, 13 de janeiro de 2009

“Atai as mãos a vosso vão receio
Que, eu só, resistirei ao jugo alheio”






“Atai as mãos a vosso vão receio”



Nessa manhã serena de Outubro, a primeira de um ano lectivo já perdido no tempo, vi-o tranquilo e sorridente, na aula de apresentação.
Era mais um aluno, entre tantos e nada me fazia advinhar a satisfação que me daria depois, no decorrer desse ano, pela vivacidade da sua inteligência, pelo seu incansável interesse por tudo o que o rodeava, pela sua gentileza de pequeno cavalheiro, numa turma de rapazinhos irrequietos.
Escoaram-se os meses, o ano acabou e outro começou, numa sucessão infinita de fim e de princípio.

E, entre surpreendida e orgulhosa, fui-me apercebendo de como crescia e se preparava com afinco, para o brilhante futuro que se abriria perante ele.
Com o tempo, porém, uma incómoda sensação de distanciamento, como se, tendo tomado a direcção errada, se afastasse para muito longe, muito para além do meu alcance, começou, de mansinho, a apoderar-se do meu cérebro, dos meus sentidos, do meu coração, alertando-me, inquietando-me, como um sinal de aviso irritante, insidioso e contínuo.

Primeiro, uma leve modificação, mais pressentida do que observada, de tão subtil e ténue; depois, cada dia mais acentuadamente, as marcas de uma terrível mudança foram-se estampando no seu rosto pálido e vincado, nos olhos encovados, sem brilho, nos ombros curvados e magros, no seu aspecto, ora desolado e triste como um grito mudo de desesperado abandono e de pungente desalento, ora agressivo, arrogante e cínico.
Nunca andava sozinho, parecia fazer parte de um bando qualquer, sempre acompanhado de indivíduos desleixados, emagrecidos, com um aspecto terrível!
Foi-se afastando cada vez mais e rejeitou, como algo inútil, que se deita fora, o convívio terno e a preocupação, cheia de incertezas, dos pais, as amenas conversas comigo, essencialmente, sobre livros, e a companhia dos “velhos” amigos.

E, de súbito, atordoada, com a alma transida de aflição e de espanto, compreendi que, já pouco ou nada, restava do rapazinho que, um dia, me fora confiado e que, orgulhosa, eu via crescer ! Crescer demasiado rapidamente, talvez!.

Mas, se crescer é difícil, o crescimento sem estruturas sólidas que lhe sirvam de suporte, pode ser tremendamente perigoso.
É então, que o apelo do desconhecido, o desejo de experimentar sensações novas, a ânsia incontrolável de afirmação, se tornam demasiado fascinantes para se lhes resistir.
Tornou-se-lhe difícil e, mais tarde, mesmo impossível, deixar de perseguir, ainda que cada dia mais inseguro, inquieto e só, a tentadora miragem de mundos diferentes e excitantes, os paraísos dourados de completa felicidade, que o pó prometia, e sem dúvida, mais sedutores do que a realidade rotineira e morna do dia-a-dia de um jovem inconformado.

Não sabia, nem podia ainda saber, que a vida é assim mesmo: rotina mesclada de tudo, pequena manta de retalhos feita de estranhas calmarias, violentas tempestades, ocultas elevações místicas e doces arroubos de amor.
E, assim, nessa eterna simbiose de Bem e de Mal de que somos feitos, todos temos os nossos ideais de bondade, de perfeição e de grandeza; zonas de luz e de paz que nos conferem dignidade e nos aproximam de Deus.

Mas, todos temos também os nossos abismos, buracos negros, imundos, onde habitam os monstros sombrios dos nossos medos ancestrais, da nossa iniquidade.
E, quando muito jovens ainda, frágeis e vulneráveis, ousamos descer ao fundo do nosso terror e mergulhar no pântano viscoso e negro das nossas angústias e frustrações inconfessadas – como ele fez – corremos o risco de um completo desiquilíbrio , num resvalar lento, contínuo e imparável que fere, dilacera e acaba por matar!

Tantas vezes tentei falar-lhe e estender-lhe a mão mas, isolado, fechado num casulo tecido de medo, dúvidas e contradições, foi perdendo a capacidade de discernimento entre o real e o fantástico. Como um animal ferido e assustado, deixou-se ficar sem defesas, a tremer de frio, mas agressivo e arrogante, ainda assim, no deserto gelado de solidão e de desamparo que criara para si!

A família, incapaz de o enfrentar, contemporizou com ele e foram, insensatamente, minimizando a gravidade do seu estado, teimosamente agarrados, na sua ignorância, na sua impotência e, talvez também, na sua vergonha, à ideia de que tudo, um dia, voltaria a ser como dantes.
Presos nessa louca esperança, davam-lhe força quando, orgulhoso, repelia auxílio, ajudando-o, sem se darem conta, a mergulhar cada vez mais fundo!
Desorientados, desalentados, vencidos, desistiram dele e entregaram-no, sem fé, nas mãos de Deus!

E, silenciosa e impotente, fui assistindo, sem querer, à tua gradual aniquilação.
Tu viste, como se, realmente, não visses, a agonia e a morte passar a teu lado.
Cada vez mais fechado em ti, isolado e frio, não compreendeste que era impossível resistir, tu só, ao jugo maligno que, ferozmente, te submetia e deixaste-te ficar com as mãos, a alma e a vontade, atadas ao cavalo negro, indomável, a resfolgar fogo e morte, que te dominava, que te ía desmembrando e que, impiedosamente, acabou por te devorar!

E, não sei se este desconsolo que me gela e amarfanha, quando te recordo, como agora, é revolta, é remorso, é tristeza ou, é, simplesmente, saudade!
Ou, é tudo isso junto!

Esta é uma pequena evocação de ti, que nunca chegarás a ler. Uma evocação do que foste, do muito que prometias vir a ser, do nada que soubeste colher da vida!
Intocável e distante, descansas, enfim, para além da dor, para além da esperança, para além da vida!
Mas, perfeito, eternizado na minha memória, enquanto memória eu tiver, vive o rapazinho que foste e permanece, intacto, o projecto de uma vida, para sempre em projecto, porque, irremediavelmente, sem futuro!

A tua Professora

“ Que, eu só, resistirei ao jugo alheio.”

MC
( A Arrogância - Pecado mortal )

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