terça-feira, 13 de janeiro de 2009


Uma página do meu diário


Dia 27 de Dezembro de 2008



Escrevo, hoje, aqui, em jeito de catártico desabafo!
Estou zangada, aborrecida, posso mesmo dizer, siderada! O João, aproveitando a boa vontade natalícia, apresentou-me, num mal disfarçado enlevo, a namorada. Chama-se Mafalda. É uma rapariguinha magra, sem graça, com uns olhos bogalhudos, uns cabelinhos loiros, escorridos e é filha de uma peixeira!
O meu filho diz que a senhora é empresária mas, se vende peixe num cubículo, a que chama peixaria, é peixeira, não será?
E, de facto, mesmo a condizer, na cara miúda da Mafalda sobressai uma boca grande, cheia de dentes, que me fez lembrar, de imediato, um arfante tamboril.
Não consigo conceber a ideia de o João, o meu filho, educado nos melhores colégios do País, na Suíça e com um MBA obtido nos Estados Unidos, que circula já nos meios da alta Finança, estar de namoro pegado, com a filha de uma peixeira!

O Carlos, meu marido, costuma dizer que estou a ficar uma snob esbanjadora! Não creio que seja verdade!
Vivemos numa zona elegante da cidade, numa casa antiga que mandámos restaurar e que decorei com a aparente simplicidade de peças únicas, bonitas e elegantes, que é meu timbre, cercada de um imenso jardim e com uma piscina que, sendo coberta, é também um encantador jardim de inverno.
Tenho um Saab, topo de gama que estou a pensar trocar por um Ashton Martin, embora prefira, ultimamente, sair com o motorista porque a dificuldade de estacionamento aborrece-me, enerva-me e cansa-me!

Sou uma mulher do meu tempo: vou ao ginásio, três vezes por semana onde o meu personal trainer, orienta os meus exercícios; faço meditação; joguei ténis muitos anos mas, agora, prefiro o golf; dou muitos jantares requintados; vou a muitos jantares, igualmente, elegantes; frequento exposições onde, regra geral, me apaixono por um ou dois quadros ou, uma ou duas esculturas, que tenho mesmo de comprar porque, sem elas, a casa, até aí confortável, passa a ficar muito árida; vou a concertos e a estreias de peças de teatro e de filmes premiados. Visito Londres, Nova Iorque, Roma e Paris , todos os anos, mais do que uma vez por ano, para estar sempre up-to-date, em termos de cultura e de moda. Os meus costureiros preferidos são, aliás, Valentino e Chanel, embora, uma ou outra linda, mas excêntrica peça de Jean Paul Gaultier, refresque o meu guarda- roupa e me faça sentir diferente!

Como qualquer mulher, adoro fazer compras!
Na verdade, não posso negar que sou uma compradora compulsiva de quase tudo, especialmente de livros! Sempre gostei muito de ler e, no meu estilo de vida, a cultura e o saber são muito importantes! Por isso, preocupo-me em me manter o mais actualizada possível. O que, admito, não é fácil! Mas, não quero ser apenas uma boneca de corda, bem vestida que esbanja sorrisos vazios e acena que sim, com a cabeça, como um cavalo amestrado!
No entanto, é claro que tenho muito cuidado com o que visto e, como a minha vida social é bastante intensa, tenho fatos, com os respectivos acessórios, para todas as ocasiões.

Dizem-me com admiração, (ou será inveja?), que o tempo não parece passar por mim e que mantenho a figura elegante dos vinte anos!
É claro que não é bem assim mas, na verdade, cuido-me: uso bons produtos de beleza, já fiz um lifting ao rosto, no Brasil, duas lipoaspirações horrorosas e, não resisti a um implante de silicone, para tornar o decote mais capitoso e atraente!

Confesso que tenho uma fraqueza que o Carlos detesta mas acompanha-me sempre: gosto imenso de ir ao casino! Adoro a excitação do jogo! O pano verde, as fichas, a voz do croupier, a roleta a girar, a girar, exercem sobre mim, uma forte, uma deliciosa atracção! Encanta-me sentir a adrenalina a subir, a subir, em doido tropel, na excitante antecipação do jogo, atingindo o auge, no momento mágico de apostar! E, não há nada, mas nada, que se compare à louca alegria de ganhar e, de num incontido alvoroço, voltar a jogar! Quando perco é uma frustração mas, há que tentar outra vez...

O Carlos diz que estou a ficar uma esbanjadora snob mas, se ele é o homem da minha vida, eu sou a mulher da vida dele!
Quando casámos, fui eu que lhe ensinei todas as manhas básicas da vida social, desde como coordenar as roupas com os acessórios, a como vestir-se, adequadamente, em cada ocasião. Fui eu que o ensinei a conhecer e a escolher bons vinhos, de acordo com os aperitivos ou com o prato a ser servido, a saber estar com elegância e, sobretudo, a saber como se movimentar, nos salões e nos corredores do poder, com o charme subtil e envolvente que só um verdadeiro cavalheiro tem! Fui eu que o ensinei a insinuar-se junto das altas personalidades do momento e lhe incuti a auto-estima e a auto-confiança necessárias, para se ser bem sucedido no mundo difícil e tenebroso dos negócios!

Fui eu que fiz , do rapaz inteligente e culto mas, apagado e tímido que ele era, o homem interessante e requintado que é hoje.! Fui eu que o ensinei, sou ainda eu que o aconselho, o ajudo e o oriento!

Comprei, hoje, aquele casaco de peles lindíssimo! Tentei resistir à tentação mas, aquela maciez fuída, doce, quase erótica, ao toque, o brilho suave, a desdobrar-se numa estonteante cascata, de mil reflexos e a beleza, quase escandalosa, da pele, não me saía da cabeça! Aquela preciosidade tinha de ser minha! Escandaloso, disse-me um Carlos atónito, foi também o preço...

O meu filho espanta-se com a minha energia e confunde-o a minha agenda tão carregada! Sei que, secretamente, tanto ele como o pai me admiram! Penso que, no fundo, eles sabem que cada jantar de estrondo que dou, cada recepção a que compareço, seja o que for que eu faça, no meio mundano que frequento, tem um sentido e uma razão de ser!
Tudo é pensado, tudo é medido, tudo é cuidado até ao mínimo pormenor!
Não nego que, com a minha sagacidade, com este ligeiro traço de manipuladora que faz parte do meu temperamento e com o meu "savoir faire", uso a estupidez dos outros para meu benefício e para os alcandorar lá no alto da escala social!
Se o Carlos é o que é hoje e o meu filho começa a ser o que será, no futuro, é porque sou eu que lanço os dados, sou eu que movo as pedras do jogo! A favor deles e a meu favor, é claro!

Ainda que me custe assumir-me como uma esbanjadora que nem sei se realmente sou, confesso que adoro sentir-me rodopiar na girândola colorida e inebriante a que chamam esbanjamento!
Adoro o dinheiro, não para o aferrolhar e esconder, como um amante ciumento, insaciável e avaro, não para ser uma sua subserviente miserável e rastejante, feliz só por o contar, recontar e o admirar! Eu adoro o dinheiro, sim, para comprar o que me apetece, sem olhar ao preço, para viajar quando e para onde eu quiser, para viver o torvelinho excitante do jogo, no casino, para transformar sonhos loucos em deliciosa realidade, para ajudar duas ou três instituições da minha simpatia e, sobretudo, para não ter de fazer contas...

Por isso, ninguém sabe, nem sequer, o meu marido, que um dos meus terrores é se um dia , nas voltas que a vida dá, me vejo transformada numa daquelas esbanjadoras trágicas, falidas, pindéricas que vão às festas com vestidos emprestados e recebem uma miséria para que se diga que estiveram lá!! Em nome do nome e da “importância” que tiveram um dia!

O que me descansa é que, se eu adoro não fazer contas, o Carlos nasceu para administrar o que obtém, nos altos cargos , que o tenho ajudado a conseguir!!
Mesmo assim e à cautela, esbanjo charme, esbanjo seriedade, esbanjo simpatia e esbanjo bom humor, nas embaixadas, nas grandes mansões, nos salões, nas viagens, no cabeleireiro, nas boutiques.
Porque quero que todos gostem de mim, que gostem tanto de mim que não possam prescindir da minha presença ! Mesmo que eu não goste da maior parte dessa gente e deteste as suas festas espaventosas, as suas conversas rasteiras e ridículas, as suas risadas estridentes, a sua vulgaridade!

Enoja-me ver pessoas cujos nomes sonantes, enchem as páginas das revistas e jornais, a portarem-se e a comerem, como labregos, nas recepções mais chics! Aliás, ainda não perdi a esperança de ver algumas dessas patéticas senhoras, estrelas de um jet-set pobre e risível, esconderem, à socapa, uns restitos de comida, em pirosos saquinhos de plástico!
Bem vistas as coisas, a minha vida não é, de todo, fácil! É mesmo muito enervante e cansativa mas, admito, tem sido muito gratificante!

É quase meia-noite. Tenho de me ir deitar e fazer o meu sono de beleza. Amanhã espera-me um dia muito agitado: ginásio, esteticista, cabeleireiro e um jantar de gala, na embaixada dos Estados Unidos!
E, ainda me falta comprar aqueles sapatos lindos, chiquérrimos que vi hoje e que vão ficar lindamente com o maravilhoso vestido Valentino com que, eu sei, vou arrasar, na embaixada!

E, o melhor de tudo: o Manuel João, elegante, com os seus cabelinhos grisalhos e a esbanjar charme, também lá vai estar! Telefonou-me hoje...

Voltando ao assunto maçador que me levou a escrever hoje aqui, a menina de olhos bogalhudos e com cara de tamboril, bem pode tirar o cavalinho da chuva! Vou pensar e hei-de encontrar um jeito de a afastar do João, do meu filho, que criei amorosamente, cuidadosamente e que, está decidido, não vai ser para os dentinhos afiados, daquela boca enorme, de peixe asmático!

A catarse está feita! Vou dormir!
Boa noite!

MC
( O Esbanjamento- Pecado mortal)

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