sábado, 19 de setembro de 2009

Orquídea

Chamava-se Orquídea e era tão bonita e delicada, como a flor de que tinha o nome.
Foi minha aluna, quando, há muito tempo, há tanto tempo que já não o sei contar, eu leccionava, à noite, numa escola, à Estrela, em Lisboa.
Orquídea era alta e esguia, tinha uns lindíssimos olhos verdes, e os cabelos pretos caíam- lhe sobre os ombros, numa cascata rebelde, de caracóis largos e brilhantes.
Era uma aluna simpática e interessada, embora, às vezes, parecesse perdida em sonhos, de que acordava bruscamente e em sobressalto,quando eu a interpelava directamente. Olhava, então, meio- atordoada, para mim, com os grandes olhos verdes, muito abertos e quase me apetecia pedir-lhe desculpa por a ter feito descer, assim de repente, à comezinha rotina, da aula! Qualquer aula, por muito interessante que seja, é sempre maçadora, quando comparada com o sonho.

Uma noite, vi-a com um rapaz alto, bem parecido que, pelo modo como a abraçava, pelos ombros, devia ser o namorado. Ele escutava-a embevecido e olhava para ela, com uma adoração enternecida. Ela, contudo, parecia desprendida, e tão alheada, que nem reparou, quando passei por eles.
Nesse momento, vi, à minha frente, o retrato vivo de certas relações, em que um ama irremediavelmente e o outro, deixa-se, passivamente, amar.
O ano lectivo acabou e Orquídea, tendo acabado o curso que frequentava, saíu da escola. Arrumei-a, então, na gaveta onde guardo todos os que foram meus alunos e donde só saem, se nas voltas da vida, os torno a encontrar ou se, de algum modo, alguma maré do destino, os traz até mim.

Anos mais tarde, ao dobrar uma dessas esquinas do meu caminho, encontrei a Orquídea numa confeitaria, no Rossio. Abraçou-me com efusão e reparei que, junto dela, estava o mesmo rapaz que, fiquei a saber, era agora o seu marido.
Sou, naturalmente, discreta e não faço perguntas! Por isso, ainda hoje não sei porque perguntei se estava tudo bem com eles.
Ele sorriu ligeiramente, corou, disse que sim, numa voz sumida e lançou-lhe o olhar triste de um cãozinho assustado que abana o rabo, ansioso e terno, sempre que o dono, eternamente severo e descontente, está por perto.
A Orquídea, contudo, com uma voz áspera, meio- estrangulada mas dura, respondeu, intempestiva, com secura breve: “Não!”.
Olhei-a atónita e encontrei apenas a parede fria, implacável mas belíssima, dos seus olhos verdes. Sacudiu a cascata de caracóis pretos que ondulava, rebelde, sobre os seus ombros, e desviou o olhar, num suspiro de profundo enfado.
A virulência, a dureza e a indiferença de Orquídea, constrastava brutalmente, com a delicada beleza dos traços puros do seu rosto.
O marido, a seu lado, agora, um bloco de gelo, tenso, a olhar em alvo, como se estivesse muito longe dali, lembrava uma casa branca, solitária, de persianas severamente corridas, uma casa sem vida, inexpressiva, abandonada numa imensidão deserta, tal a impressão de vazio e de morte, que a rigidez do seu rosto e o desligamento gélido da sua postura, me deram.
Apeteceu-me, nesse instante de infinita tristeza e de desamparo, passar-lhe a mão pelos cabelos aloirados e, como se fosse um miúdo choroso, por ter caído e esfolado os joelhos, poder dizer-lhe com um sorriso e convicção: “Está tudo bem! Vai ficar tudo bem!”
Desajeitadamente, despedi-me e afastei-me depressa, ansiosa por chegar a casa para tomar uma aspirina que abrandasse a terrível dor de cabeça que quase me cegava e beber um chá bem quente que me confortasse a alma e dissolvesse o espanto de gelo que a envolvia.

Um ou dois anos depois, vi a Orquídea sair de uma boutique requintada e exclusiva, na Avenida de Roma, e cuja montra eu admirava. Seguia-a uma empregada que carregava vários sacos de compras.
Nunca saberei se ela me viu quando passou por mim! Bonita, elegante e segura de si, sacudiu a cascata de caracóis pretos que lhe emoldurava o rosto e brilhava, suavemente, ao sol de inverno e entrou, sorridente, num carro luxuoso, já com a porta aberta por um perfilado motorista, e onde a esperava um homem de cabelos grisalhos.
O motorista fechou, delicadamente, a porta, tomou o seu lugar, ao volante e o carro arrancou silenciosamente.

MC

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