sábado, 19 de setembro de 2009

Casamento, mentiras e ... chá!

Tinham ficado, em casa, nessa noite de Sábado. Ricardo queria ver o jogo de futebol e Paulina estava tão cansada e deprimida que nem se importou de não sair.
O Gui, o filho de um ano, dormia placidamente.
Paulina, sentada a lado de Ricardo, fingia seguir o jogo.
Presa num vazio, numa flutuação e num desencorajamento, que já lhe eram familiares, ía recordando, ao acaso, pedaços de vida que, às vezes, nem lhe pareciam ser a sua.
Tinham namorado sete anos e depois casado. Paulina fora educada para casar, ser dona de casa e constituír família, sem pensar mais, na carreira profissional
A mãe, que o marido deixara, era ela pequenina, sempre lhe dissera, com uma surpreendente convicção, que só um homem, em casa, dá estabilidade e segurança! Depois, falava-lhe dos imensos sacrifícios que fizera para a criar, para a educar e para lhe dar o curso de Gestão! Sozinha!E, em vez de um legítimo orgulho, havia uma frustração triste na voz de mãe e um inexplicável desgosto, no brilho húmido dos seus olhos que, simultaneamente, a enervavam e a comoviam!

Estava casada há seis anos. Casara verdadeiramente apaixonada? Paulina, realmente não sabia!
O namoro com Ricardo fora sempre muito tranquilo, sem grandes quezílias, mas também sem arroubos ardentes de paixão, sem cenas loucas, causadas pela chama incandescente, do ciúme e, simplesmente, quando puderam casar, casaram! Como previsto!
Ao princípio, no entanto, tinha sido, até, excitante: o cheiro a novo do apartamento, as mobílias bonitas, a rescenderem a madeira encerada, os cortinados, escolhidos com muito cuidado, e a cairem, elegantes e tersos, até ao chão, os tapetes fofos, onde os pés se afundavam e se perdiam, os primeiros cozinhados, as primeiras visitas dos amigos! Tinha sido mesmo uma exaltação, fazer amor em todas as divisões da casa!
Luxos e fantasias! Pequenos luxos e pequenas fantasias, como pequena e previsível, era, agora, a sua vida, pensou insatisfeita!
Sentia-se emparedada numa rotina pesada que a sofucava e não acabava nunca! Não era esta a vida que sonhara para si!
O Ricardo continuava com os olhos presos no ecrã do televisor, a seguir, meio-estupidificado, o jogo.
Sou feliz no casamento? Não, não sou!, pensou.
“ Que disseste, Lina?”
“ Nada! Não falei!” Ele olhou-a, por momentos, desconfiado. “ “ Estou a organizar a semana e, se calhar, falei alto, sem querer!”
Tinha de ter cuidado, pensou, e não confessar, mesmo baixinho, o frustrante desapontamento que era o seu dia a dia! Pelo menos, por enquanto...

Quando o casamento parecia estar a entrar em queda livre, ficara grávida do Gui. Foi uma alegria e um espanto! Já tinha desistido da ideia de ter filhos mas, essa esperança deu um impulso novo ao casamento e fizera renascer a relação deles, das cinzas quase mortas, de um amor, pouco mais que tépido!
Paulina viveu a gravidez, no chamado estado de graça! Talvez este seja mais um lugar comum, pensou sorrindo mas, como a mãe dizia, o que é a vida, senão um conformado lugar comum?
Nesses meses, mesmo com uma barriga disforme, sentira-se quase bonita, importante, e deixara-se mimar, como se o mimo e uma especial atenção lhe fossem, simplesmente, devidos!
O Ricardo tornou-se, então, inacreditavelmente solícito e terno!

Ele nunca fora um homem interessante e os anos não estavam a ser bondosos com ele! Engordara, e os traços grosseiros do seu rosto, tornavam-se ainda mais grosseiros e pesados.
Paulina, no entanto, tinha de reconhecer que era um homem bom e generoso.
A sogra que tinha sido sempre muito desligada, mas simpática, transformou-se, depois do casamento deles! Recebia Paulina com indisfarçada frieza e aproximou-se, ternamente, do filho. Convidava-o para almocinhos, sem a mulher, telefonava-lhe e chegara mesmo a dizer-lhe que a porta de casa estava sempre aberta e o quarto dele, exactamente, como o deixara, à sua espera! Se, um dia, fosse preciso...
Quando o Gui nasceu, tiveram a primeira grande discussão. Ele queria o menino entregue à mãe dele, porque não confiava na sogra; ela, no entanto, tinha prometido à mãe que seria ela que tomaria conta do neto.
Foi uma briga feia que quase os deixou à beira da ruptura. Por fim, decidiram que a criança iria para um infantário, que escolheram com infinito cuidado e pago a peso de ouro.
Contudo, para gáudio de Paulina, há um ano que ela seguia, religiosamente, o ritual de entregar e ir buscar o Gui, a casa da avó materna, continuando, no entanto, a pagar o óptimo infantário, como se a criança lá estivesse, e onde, Paulina não se cansava de afirmar, o filho era muito bem tratado! Na verdade, estava lindo, esperto e simpático, o pequeno Gui, que era o orgulho e o enlevo de Ricardo!
Paulina olhou, de soslaio, para o marido que continuava a torcer, nervoso, pelo seu clube e sorriu. Um sorriso matreiro, quase mau que lhe iluminou o rosto macilento, a pele um pouco baça.
Ele nem sonha que o Gui está com a minha mãe! Nem a sogra, essa megera que interferia tanto na vida deles!
Mas, ela pregara-lhe uma valente partida! E, imersa nos seus pensamentos, Paulina riu baixinho, com deleite.
“ Porque te estás a rir?” perguntou Ricardo, surpreendido.
“ Eu, a rir?”
“ Sim, exactamente tu, a rir sozinha!”
“Ora, não é nada! Estou a recordar algumas marotices do Gui!”
Ricardo calou-se, depois pareceu que ía dizer qualquer coisa mas, continuou, silencioso, a ver o jogo.

E, ela continuou a seguir, muito quieta, o fio do seu pensamento...
Um dia a sogra fora a casa deles e Paulina serviu-lhe um chá, com bolo de chocolate, que fez para a ocasião e umas sandes gostosas, pequeninas e fofas.
Quando estava na cozinha a preparar o tabuleiro, com uma bonita toalhinha de linho, caprichosamente bordada e com o delicado serviço de porcelana, prenda de casamento, lembrou-se do laxante que lhe tinham trazido do Brasil. Era um produto especial, em pó, sem gosto, que se desfazia em qualquer bebida e muito eficaz.
Decidiu, então, pôr um pouco de laxante na chávena de chá da sogra que o tomou, deliciada e foi pedindo mais. Paulina, divertida, foi-lhe servindo chá, com um bocadinho de laxante.
No dia seguinte, Ricardo chegou a casa muito preocupado porque a mãe estava doente, com uma séria gastro-enterite! Devia ter sido de um arroz de marisco que comera ao jantar...
Esteve assim uma semana!

O futebol acabou com a vitória do clube do Ricardo. Satisfeito com o resultado, levantou-se, espreguiçou-se e perguntou:
“ Ficas, ou desligo o televisor?”
“ Fico ainda mais um bocadinho! Vou já!”
Com um sorrisinho cínico, Paulina decidiu que estava na hora de oferecer outro requintado chá à sogra que a hostilizava tanto mas, que ela, como dedicada nora que era, recebia com tanta simpatia!
Se a sogra adoecesse, se desaparecesse, tudo se tornaria tão fácil!
Afinal, sobre ela pairava, cada vez mais próxima e aflitiva, a ameaça de, um dia, ter de afastar o Gui dos cuidados da avó materna...

De repente, lembrou-se da sua amiga, de longa data, a Sofia. E, subitamente, a picada venenosa da inveja sobressaltou-a.
Sofia era tudo o que ela queria ter sido: bonita, elegante e independente. Nunca quisera casar. Vivia com o namorado, um rapaz bem parecido, culto e interessante mas, a casa era dela! Uma casa alegre, espaçosa, decorada com gosto e com um lindo jardim, onde brincava a linda e meiga cadela labrador, a Naomi, a princesa reinante! Tinham estado com eles, umas semanas antes, e jantado juntos, lá em casa. A mesa estava posta com elegância, a comida, vinda de fora, estava óptima e o vinho delicioso! A Sofia recebeu-os fresca, sorridente e perfeita. Como uma rosa, a florir, na primavera.
No entanto,trabalhava muito: dava pareceres de Direito, leccionava no Ensino Superior, estava a acabar a tese de doutoramento, falava várias línguas. E, continuava a investir, fortemente, na sua formação!
Os anos, porém, pareciam não passar por ela!
A Sofia tinha uma vida tão diferente da dela! E Paulina sentiu-se tão limitada, tão comezinha, tão sem graça, tão infeliz, e tão... enraivecida!

Será possível que dois eus diferentes partilhem a minha personalidade, pensou, subitamente inquieta!
Um, o seu eu das boas recordações, dos amigos, do afecto, que fazia, dela, a Paulina simpática e solidária de quem todos, normalmente, gostavam! O outro, o seu eu tenebroso, do ciúme, e da raiva que fazia dela a amiga invejosa; a nora vingativa e velhaca, que já idealizava oferecer à sogra outro chá com laxante e uma pretensa simpatia; a mulher mentirosa, com parte do casamento assente numa tremenda falsidade que envolvia o filho, uma criança inocente e um marido confiante!
Será mesmo confiante ou, também ele, um credenciado fingidor, por cansaço e por comodismo?
Estes dois eus que se degladiam ferozmente, dentro de mim, torturam-me e esgotam-me, confessou, em segredo, a si própria!
Às vezes, Paulina sentia um imenso gozo e um impulso irresistível de deixar à solta esse seu eu matreiro e malévolo que, no entanto, lhe infligia, também, tanta ansiedade, tanta solidão!
Talvez eu destrua um pedaço deste meu eu esconso, quando o Gui começar a falar e tiver mesmo de ir para o infantário, pensou ansiosa!
Mas, eram horas de dormir e por enquanto não queria pensar nisso!
Por enquanto... não!

MC

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