domingo, 25 de outubro de 2009

Uma paixão revisitada... Dois olhares!

Ele

Ele recostou-se, esgotado, no sofá do escritório! A mulher já tinha ido para a cama, ver a sua série preferida, no AXN.
As filhas dormiam placidamente!
Tinha-a visto hoje! Pela segunda vez, em onze anos, tinha-a visto, esta manhã! Ela saía da carrinha Volvo que conduzia, bonita, elegante, flexível, como a recordava! Mais mulher, talvez! Mas, também mais atraente!
Ela não o vira. Melhor assim! O coração dele disparara, num turbilhão de doidas emoções, como se uma rajada de vento o tivesse atingido brutalmente e as mãos, trémulas e suadas, atrapalharam-se, como se, de repente, não soubessem o que fazer com o volante!
Nunca a tinha esquecido, a imagem dela tinha permanecido gravada, no mais íntimo de si e essa secreta permanência dela, junto dele, dera-lhe sempre um certo conforto!
Tinha viajado muito mas, para onde quer que as suas atribulações o tivessem arrastado, ela estivera lá, a seu lado e, por isso, nunca se sentira, totalmente sozinho. Porque, como alguém escreveu, “ se a imagem do ser amado continuar viva no nosso coração, o mundo inteiro é a nossa casa.”
É estranho, pensou, nunca tinham sido namorados! Mas, tinham-se amado! Ele amara-a! Muito!
Ela era uma menina azougada, cheia de carácter e de energia e ele tivera de crescer muito depressa e aprender, antes de tempo, que a vida é feita de penosas cedências e de dolorosas opções! E, ele cedera! E optara! Talvez, aparentemente, pelo mais fácil, pelo mais agradável, pelo mais conveniente! Pelo que, mais tarde, o pudesse realizar plenamente, e fazer feliz, como homem, seguramente, não!
A mulher apareceu à porta e perguntou, num tom plangente que o aborreceu e irritou: “ Não vens deitar-te? Amanhã, levantamo-nos tão cedo!”
“ Já vou! Não te preocupes comigo! Dorme!”
A mulher parecia recusar-se a crescer! Comportava-se como a menina rica, fútil, mimada e aborrecida que era, e cobria telas e telas de tintas coloridas, a que chamava, pomposamente, pintura! Era, pois, na cabeça dela, pintora!
Ele tinha as motos, as corridas, o Paris/Dakar, os carros!
Nunca tinha havido entre a mulher e ele essa delicada intimidade, essa terna cumplicidade que só os verdadeiros amantes conhecem! Era como se uma parede invisível mas, indestrutível , se interpusesse, permanentemente, entre eles! Constrangendo-os! Separando-os!
Recostou-se, outra vez, no sofá e recordou o momento em que o amigo de sempre, o Alex, lhe telefonou a dizer que ela tinha acabado de ter um acidente.
O dia ensolarado e luminoso tornou-se, então, subitamente sombrio, o coração bateu desorientado, como se tocasse a rebate, as pernas tremeram, de repente velhas e fracas mas, em minutos, estava ao lado dela!
Encontrou-a vestida com uma enorme farda de bombeiro, porque tinha caído, com o jeep, a um riacho, numa prova de obstáculos! Viu-a sã e salva, o cabelo encharcado, ainda a tremer, como um gatinho assustado e perdido no jardim, em dia de chuva e, lembrava-se bem, sorriu feliz! O dia, então, clareou, o sol cobriu de ouro, tudo em redor, e o peso na alma dissolveu-se, como um pedaço de gelo, em água quente.
Abraçou-a e respirou fundo! De alívio!
Levou-a a casa e esteve a seu lado, enquanto ela contava aos pais, assombrados, aquele incidente de menina travessa!
Em catadupa, reviveu a noite, em que a foi acompanhar a casa e o portão da garagem desceu mais depressa do que esperava e ele, absorvido nela, bateu-lhe em cheio, com o jeep que, então conduzia. O portão estragou-se completamente. A recordação dessa noite, a inquietação e o susto dos dois, bem resolvidos graças à compreensão dos pais dela, fizeram-no sorrir de novo, no aconchego do escritório!
Entretanto, a vida dele tinha ficado num caos: o relacionamento dos pais quase em ruptura e as empresas de família, em queda vertiginosa, devido à cabeça doida do pai, com mulheres e jogo! A aflição e o desgosto da mãe era mais do que podia suportar!
Interrompeu o curso que nunca mais terminou, e deitou mãos a uma das empresas, com a ajuda do pai da, agora, sua mulher que, entretanto, decidira que ele seria seu marido, custasse o que custasse e a quem ele se submeteu, para poder suportar a casa, ajudar a mãe e permitir que as duas irmãs mais novas continuassem a estudar! Sem dificuldades!
Como se nada tivesse acontecido e a vida, sem um balanço, sem um tropeço, continuasse serena e deslizante, como um belo passeio, à beira- mar, em tarde amena, de verão!
Trabalhou, duramente, no interior de Moçambique, na exploração de madeira e tornou-se o empresário bem sucedido que era hoje!
O noivado e os preparativos para o casamento, passaram por ele, como um sonho, de que ele parecia não fazer parte!
Quando, enfim, acordou daquele sonho estranho e inquieto, daquele amontoado de cenas confusas, daquele pesadelo delirante, estava casado!
Vendi-me, fui um fraco e, no fundo, todos os que diziam que me amavam, quiseram que me vendesse, em seu próprio benefício, pensou com amargura!
Ele casou no Verão. No início desse ano, quando ela fez, com êxito, o exame na Ordem dos Advogados, ele, que acompanhava, de longe, todos os seus passos, mandou-lhe entregar, no escritório, duas dúzias de maravilhosas rosas chá! Sem cartão! Não era preciso... Ela sabia!
Um mês depois, no dia dos Namorados, um dia que, afinal, não era deles, mandou-lhe, também e ainda assim, um precioso ramo de rosas, agora, vermelhas! Sem cartão! Não era preciso... Ela sabia!
À namorada não foi capaz de dar flores! À namorada, não!
Ele nunca lhe falou das rosas. Ela nunca lhas agradeceu! Não era preciso... Eles sabiam!
Um Sábado, à noite, encontrou-a numa discoteca e ficaram, longas horas, a conversar, enquanto os olhos namoravam e, apaixonadamente, diziam o que as bocas não se atreviam dizer, as mãos se enredavam e o coração batia, batia...
À saída, a namorada estava à espera dele, viu-os juntos e fez uma patética cena de ciúmes, de choro e de lamentações que o envergonhou e enfureceu tanto, que se dispunha a pôr fim a tudo e a assumir que a amava e era ela que ele queria, quando ela, com uma voz firme e o olhar azul, frio e duro, disse à chorosa rapariga, agora sua mulher, abrindo, inteiramente, mão dele: “ Não se preocupe! Somos só amigos! Não há nada entre nós! Sejam felizes!”
Um dia, pouco antes do casamento, encontraram-se numa estação de serviço, na auto-estrada.
Lembrou-se, com angústia, da sensação de desamparo e de perda, quando a viu, do tornado violento de paixão e de mágoa que se apossou dele e fez desaparecer tudo, num louco rodopio, numa rajada de vento que a deixou, só a ela, à sua frente!
Ela nunca soube quão difícil foi para ele, tentar manter a calma e dizer-lhe, em jeito de despedida e num mal disfarçado despreendimento:
“ Não sou o homem que mereces! Não sou digno de ti! Vais encontrar alguém, muito melhor do que eu, que te vai fazer muito feliz!”
E abraçou-a! Apertou-a nos braços e aspirou, pela última vez, o perfume da pele dela! Com o coração desfeito, com a vida em farrapos, perdido num túnel frio, escuro, sem retorno e sem saída!
Separaram-se e, hoje, em onze anos, era a segunda vez que a via! Tentou respirar fundo, para aliviar a opressão que parecia esmagar-lhe o peito!
E, compreendeu, que o seu amor por ela, continuava vivo e infatigável, sempre renascido, como um braseiro que se reacende, vibrante, com uma rajada de vento!
Esfregou os olhos e, numa urgência, quis, plasmado em si, o aroma suave dela, dos cabelos revoltos dela, quis, desesperadamente, sentir o toque macio de pele dela, na sua, de mergulhar o olhar dele, turbulento e impaciente, no oceano azul, puro e sereno dos olhos dela!
Então, como a árvore que, sempre que chove, chora, também ele, porque a vira tão perto e a soube tão longe, como a árvore, fustigada pela chuva, chorou!



Ela

Eram quase onze horas da noite quando ela estacionou o carro na garagem.
Ao longe, ouvia os latidos de alegria da Maggie, a fiel lab que, ansiosa com a chegada da dona, descia apressadamente as escadas para, aos saltos, lhe dar as boas vindas!
Estava cansada…o dia tinha sido longo e ainda tinha um trabalho para entregar, por email, em mais um curso que decidira fazer para valorizar o seu CV.
Era obcecada por trabalho, sabia disso... Uma qualquer doença que a impelia ocupar-se até à exaustão! Questionava-se se o fazia por efectiva necessidade de se aperfeiçoar ou, para se abstrair da vida rotineira que vivia com Miguel, o seu companheiro de há quase seis anos.
Subiu as escadas e viu-o, no corredor, sorridente e afável, como habitualmente. Pensou que o final da paixão é triste e que não aceitará, de novo, a presença de um homem dentro de casa, da sua casa… Precisava de espaço! Sentia-se asfixiar dentro do único local onde deveria ser capaz de relaxar e descansar, a sua casa. Abriu a boca, num esgar cínico, ao lembrar-se que o Miguel nunca se mudara definitivamente para a sua casa, conservando vazio o apartamento que comprara há anos, em Matosinhos Sul. Tinha sido uma decisão acertada.
Cumprimentou-o, distraída e distante, e avisou-o que tinha de trabalhar. Como sempre….
Precisava de estar sozinha e.. de pensar. A Maggie acompanhou-a, num silêncio cúmplice, sossegando-a, com a sua respiração ritmada, na caminha ao lado da secretária dela. Ela olhou com ternura para aquele focinho preto que, tranquilamente dormia, virado para ela. Apesar da alegada irracionalidade dos cães, ela não deixava de se surpreender com o amor e carinho que aquele corpo felpudo tinha para lhe dar.
O dia fora complicado. Muito trabalhoso e cheio de adrenalina e desafios. Mas não era essa a razão da pontada que sentia na nuca…
Tinha-o visto, parado num grande Mercedes, naquela manhã, perto de casa dela. Não sabia se ele a teria visto. Ela viu-o e muito bem…
Ele, de todos os homens que se cruzaram com ela, foi o único a ter lucidez suficiente para perceber que nunca conseguiria viver com ela.. Apesar de ser o mais arrogante e truculento de todos, foi o único que compreendeu que com ela nunca conseguiria sustentar uma relação amorosa convencional. Os outros, tolos, ainda se acharam capazes…para depois capitularem… Um vive ainda numa eterna adolescência… Mas, se esse a ensinou que o casamento não era para ela, o Miguel mostrou-lhe que ela é incapaz de partilhar o seu espaço com quem quer que seja, embora ele tenha tido o melhor dela e o tenha desperdiçado quando, há três anos a abandonou durante seis meses. Os actos têm consequências, ainda que estas se revelem muito mais tarde… Pecados velhos têm longas sombras...
Lembrou-se que lera, numa revista no cabeleireiro, que ele tinha duas filhas. Ele seguiu um percurso que ela, teimosamente, não segue ... A mulher dele, aparentemente fútil, mas, na verdade madura e decidida, tinha conseguido construir com ele, a família grande com que sempre sonhara.
A verdade é que o amava muito mais do que ela o amou. Soube abdicar de tudo, incluindo do amor próprio, para casar com ele. Ela não...! Orgulhosa, arrogante e senhora de si, deixou-o ir. Protegeu-o, inclusivamente, perante aquela que seria mulher dele, quando esta, numa espera enciumada, a viu a deixá-lo junto ao carro, um dia de madrugada, na Ribeira, depois de uma noite apaixonada… Ele nunca lhe perdoou a frieza e o sangue frio, quando abriu mão dele, para sempre… “Se fosse ao contrário, eu teria dito que nós tínhamos um romance… eu tinha estragado tudo, quanto mais não fosse, pelo prazer de estragar…” disse-lhe ele, numa das últimas vezes que a viu junto à praia, naqueles encontros, à socapa, dos amantes que não eram, ao que ela, segura e firme, retorquiu, “Não queiras que seja eu a resolver os teus problemas!”
Viram-se na estação de serviço da Mealhada há onze anos.
Não foi por acaso… Ele sabia que ela frequentava o mestrado em Coimbra, porque já se tinham encontrado, mais do que uma vez, na auto-estrada, quando ele ia ao cardiologista nos HUC. Chamou-a com o pretexto de não ter bateria no carro. Ela foi ter com ele… Como sempre! Ele queria despedir-se dela... Nunca lhe disse que casava esse Verão… Meses antes, tinha-lhe enchido o escritório, de rosas chá, como presente pelo sucesso nos exames da Ordem e por outra coisa qualquer, ( talvez o Dia dos Namorados que nunca foi deles)… mandou-lhe, então, um fantástico ramo de rosas vermelhas, da Florista Antónia, situada na rua da Venezuela, onde vivia a namorada dele e onde ela viveu poucos anos depois... Ri-se, ao lembrar-se que, por momentos, ainda tinha posto a hipótese que aquelas maravilhosas flores, tivessem sido mandadas pelo colega de escritório, o João, que, coitado, nem uma esmola tinha para dar a um pobre!
Ele admirava-a intelectualmente como nenhum outro a admirou... Sem complexos! Talvez porque foi o único que sempre soube e teve a consciência que não viveria com a capacidade intelectual e a tenacidade dela! Os outros não...
Foi, nesse dia, que se despediram. Disse-lhe, então, como que para se convencer e a convencer, que ela encontraria alguém melhor. Ela achou que sim! Aquela paixão esgotava-a e amarfanhava-a, apesar de a ter feito crescer. Ela até já tinha encontrado um namorado interessante(o tal que lhe mostrou que o casamento não era para ela)e para ela aquela despedida era para sempre, definitiva.
A libertação de um jugo que se cansara de transportar, uma dor que jurou nunca mais voltar a sofrer …
Recordou o dia em que ela tivera aquele acidente com o jeep, numa prova TT, ele correra a socorrê-la! Chamaram-no e ele assustou-se... Protegeu-a à frente de todos, sem hesitação! Abraçou-a, com força, ansioso! Mas, não a ajudou a contar aos pais ... ela fê-lo sozinha, assumindo as consequências. Ainda assustada mas, sem medo!
Sorriu ao lembrar-se do incidente da porta da garagem. Completamente perdido, a olhar para ela, que estava do lado de fora a aguardar que ele saísse, para estacionar o jeep que conduzia, nem viu o portão descer. Ainda há semanas ela e o melhor amigo dela lembraram esse episódio com gargalhadas… Terá feito treze ou catorze anos, no dia do aniversário da mãe dela… Premonição…
Também aí, ele não a ajudou a explicar nada ao pai.. ela fê-lo , aliás, como quase tudo na vida, sozinha! Assumiu as consequências… O pai é que nunca acreditou que a filha fizesse tamanho disparate ao volante do seu querido jeep! E a verdade foi reposta. A mãe dela soube sempre a verdade. Foi uma bizarra prenda de aniversário…
Ele viajou muito, trabalhou em Moçambique. Ela lembrou-se , com um tremor, dos telefonemas que ele fazia quando se sentia só e dos reencontros emocionados, às vezes, ainda mal refeito do jet lag.
Mas ele casou, porque quis...! Não foi, certamente, assim tão mau… Ele sabia que jamais o faria com ela… não, com ela!
Hoje, ela sabe que a decisão não foi difícil, porque nunca houve alternativa.
Actualmente, ele é um empresário com sucesso, a que não será estranho o capital do sogro. O seu hobby continua a ser competir com motas. Tem mesmo uma equipa. No entanto, os êxitos não são muitos. Parece que ainda não conseguiu acabar o Paris Dakar. Mas, irá, certamente, continuar a tentar! E, para isso é essencial ter dinheiro, muito dinheiro...
Sim… ele hoje tinha-a visto no carro... Ela também o viu... Sentiu o coração a bater mais depressa quando recordou o rosto dele. Aos olhos um do outro ter-se-ão visto, como naquele encontro na estação de serviço: ele, esguio e tenso... ela, bonita e firme, sem que fossem visíveis, as marcas que, por dentro, foram sendo cinzeladas, ao longo dos últimos onze anos.
Mas, como há cinco anos, quando ela o viu sozinho na discoteca, sem ele a ter visto, ignorou-o e seguiu, segura e impassível, em frente, sem olhar para trás!
Ele tinha tentado telefonar-lhe, nessa tarde, depois de a ver… Ela, por acaso, não atendeu… Era um número privado que ela soube não ser da mãe dela…

Nota: Este texto, "... Dois olhares!", foi, como o título indica, escrito a duas mãos!

MC/SC

1 comentário:

redonda disse...

Gostei do texto ou dos textos.