quinta-feira, 9 de maio de 2013

Marlon morreu. Vamos ao concerto? - João Miguel Tavares, Público, 9.05.2013





Em Janeiro de 2012, Kim Chol, um importante oficial do Exército norte-coreano, foi fuzilado juntamente com alguns amigos por ter consumido álcool durante os cem dias de luto decretados no país, após a morte do querido líder Kim Jong-il. Na Coreia do Norte matam-se pessoas por beberem durante um período de luto. Já na Universidade do Porto morrem pessoas e faz-se o luto bebendo até cair. É certo que o regime de Pyongyang não se recomenda. Mas a Federação Académica do Porto também não.

Para quem anda à procura de exemplos da selvajaria capitalista, não vale a pena dar-se ao trabalho de esmiuçar as intervenções de Vítor Gaspar - basta olhar para a decisão de não suspender o programa da Semana Académica do Porto depois de um estudante ter sido assassinado a tiro no recinto. Os responsáveis pela Queima não precisavam de ter anulado todo o evento: cancelavam o primeiro dia de festejos, ainda lhes sobravam seis, e fingiam ter um mínimo de sensibilidade. Mas nem isso. O Lado Negro da cerveja é demasiado forte. E por isso, os estudantes preferiram apostar em iniciativas simbólicas sem impacto orçamental, tipo bué minutos de silêncio comoventes, "tão a ver?

É claro que a rapaziada ficou tristíssima com o que aconteceu. E, para ultrapassar o trauma, decidiu afogar todas as noites a mágoa em bebida. Basta ler a reportagem que Natália Faria assinou ontem neste jornal para ficarmos sensibilizados com tamanha comoção alcoólica. Permitam-me citar: "Não é que o nome de Marlon tenha sido esquecido. Mas, dizem os estudantes, festejar e beber podem ser uma forma de fazer o luto. "Ele não teria gostado que interrompessem a festa por sua causa", alega Rita Machado, 19 anos." Segundo a jornalista, a estudante Rita fez a alegação "entre goles servidos directamente de uma garrafa de litro e meio de cerveja" - o que deve ter ajudado muito na recolha da opinião do morto. E a reportagem seguia com caloiros de gatas a serem sulfatados de vinho tinto, uma outra conhecida forma de luto entre os bosquímanos do Kalahari.

Eu pertenço à geração que há 20 anos, neste mesmo jornal, foi apelidada de "geração rasca" por Vicente Jorge Silva. Por isso, sou naturalmente cuidadoso quando se trata de fazer generalizações sobre a juventude actual. A juventude actual é como a juventude de qualquer época: cheia de energia e uma certa tendência para a parvoíce. O director da Faculdade de Desporto, onde Marlon Correia estudava, escreveu um comunicado indignado, onde dizia que esta não é "a juventude com a melhor formação de sempre" - é, isso sim, a juventude com a "maior instrução de sempre", porque "formação é outra coisa bem diferente: tem a ver com o índice de consciência, competência, sensibilidade e responsabilização cívica".

Dizer que estas qualidades faltam à juventude actual como um todo é obviamente abusivo. Basta ir à página de Facebook da Federação Académica do Porto para verificar que inúmeros estudantes não concordaram com a opção de continuar com os festejos. Mas importa deixar claro o quão insensível foi a decisão, e o quão ofensivo é ver milhares de estudantes bêbados arrastarem-se pelo mesmo local onde um colega seu acabou de perder tragicamente a vida. Quando, na cabecinha de tantos estudantes, o direito à bebedeira se sobrepõe ao respeito pela morte, alguma coisa de muito errado se está a passar. Acordem, meninos.

João Miguel Tavares, Público, 9.05.2013 
 
 

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