quinta-feira, 16 de maio de 2013

Que lástima, querida Fátima - João Miguel Tavares, Público, 16.05.2013


 Que Cavaco não saiba quantos são os cantos dos Lusíadas, é embaraçoso para ele mas inofensivo para o país. Que Cavaco chame ao 10 de Junho o "dia da raça", é embaraçoso para ele e ofensivo para o país. Que Cavaco venha dizer que a superação da sétima avaliação da troika foi "uma inspiração da nossa Senhora de Fátima" e "do 13 de Maio", é embaraçoso para ele, ofensivo para o país e exige que um cortejo de historiadores se desloque rapidamente a Belém para explicar ao Presidente da República o significado histórico da invocação de Fátima num contexto político de crise, conflito ideológico e empobrecimento.

Que vá Rui Ramos, Fernando Rosas, José Mattoso, Irene Flunser Pimentel, Henrique Raposo ou até Manuel Loff - de preferência, que vão todos, da esquerda à direita, porque qualquer historiador serve para explicar ao senhor Presidente que utilizar a intercessão de Nossa Senhora para justificar uma determinada linha de actuação política e económica só pode significar uma de duas coisas: ou uma manifestação de inadmissível ignorância por parte de um chefe de Estado português; ou uma vergonhosa afronta a todos os que lutaram para que 2013 não fosse igual a 1963 e que, ao contrário de Cavaco, nunca escreveram pelo seu próprio punho numa ficha da PIDE "integrado no actual regime político".

É verdade que com o advento da democracia Fátima se foi rapidamente despolitizando. Hoje em dia, quem vai rezar ao santuário da Cova da Iria não tem a menor consciência da identificação de Fátima com o Estado Novo e da forma como um e outro se foram alimentando mutuamente a partir do final dos anos 30. Mas factos são factos, e o certo é que a visão sacrificial dos três pastorinhos, toda ela muita penitência, arrependimento e oração, mais a sua explícita mensagem anticomunista, assentou como uma luva no discurso do regime, que com a cumplicidade da Igreja aproveitou, de caminho, para erguer Fátima a "altar do mundo", reciclando a velha e mitológica ambição de grandiosidade nacional, agora através da via transcendente - já que para a via imanente não havia nem gente, nem dinheiro.

Um peregrino que se arrasta de joelhos em torno da capelinha das aparições não tem de saber isto. Mas um Presidente da República tem. Cavaco Silva não pode desconhecer as tentativas de invocar a mão de Deus, via Fátima, na instauração do regime do Estado Novo. E sabendo isso, vir agora invocar a mão de Nossa Senhora no escrupuloso cumprimento das directivas da troika e da sétima avaliação é de um mau gosto a toda a prova. Seguindo a sua fina linha de raciocínio, e em última análise, meter Deus nos assuntos de César significa neste caso o quê? Significa que é Deus que deseja a austeridade. Como era Deus que desejava o salazarismo.

Por esta altura, suponho que os leitores do PÚBLICO já me vão conhecendo: eu próprio acho que não há alternativa à austeridade. Eu, tal como Cavaco, fiquei contente que tenhamos superado a sétima avaliação da troika. Mas, por enquanto, ainda não comecei a confundir as minhas opiniões com as de Nossa Senhora, e muito menos com as de Deus. Não sei se Cavaco está como a irmã Lúcia, e fala com a Virgem à noite nos seus aposentos. Mas se assim for, faça como ela: entre para um convento de clausura, escreva vários volumes de memórias, e deixe a política para quem tem os olhos mais postos na terra do que no céu.

 
João Miguel Tavares, Público, 16.05.2013

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