Era a noite de Passagem de Ano.
Ana viu-se, mais uma vez ao espelho e sorriu, feliz, no seu vestido vaporoso em suaves tons pastel. Ía começar o novo ano, com cores bonitas, claras e radiosas que prenunciassem alegria e tudo de bom, nos próximos doze meses.
O Gustavo viria buscá-la dentro de um quarto de hora.
O penteado e a maquilhagem tinham ficado perfeitos, e o vestido, assentava-lhe como uma luva.
Estava bonita, envolta num delicado perfume, a rosas e a jasmim e emanava dela a luz radiosa da mulher que se sente bem consigo própria.
Uma nuvem, contudo, toldou-lhe o brilho do olhar e os traços do seu rosto endureceram ligeiramente, quando se lembrou da Mãe, no quarto ao lado.
Mas, que poderia ela fazer?
“Esta noite, entre todas as noites, tenho de sair e divertir-me! Esta noite, quero esquecer este pesadelo, este drama que me consome! Chega!”, pensou.
A mãe, quase inconsciente, jazia na cama. Não falava, não se mexia, era alimentada por sonda e só nos olhos grandes, escuros e ainda bonitos, se parecia concentrar o sopro de vida que ainda pulsava nela!
A senhora Irene, a empregada da casa, dissera-lhe, compungida e, talvez um pouco reprovadora, nessa manhã, que estava preocupada porque achava a mãe diferente.
Diferente, como? A mãe, há muito que estava sempre na mesma: imóvel, calada, sem reacção, como uma concha vazia.
Os hospitais não deviam mandar para casa doentes, no estado em que se encontrava a mãe.
Diziam que era para se sentirem mais confortáveis no aconchego da família e do lar! Mais confortáveis, como?
A mãe já não parecia sentir nada e ela, Ana, tinha um ritmo de vida que não se compadecia com o aconchego de alguém que já não interagia e parecia tão longe, tão perdida numa ausência triste e fria, sem retorno.
Na verdade, a senhora Irene lá ía cuidando, carinhosamente, da mãe e da limpeza da casa, com a ajuda do serviço de enfermagem domiciliário, todas as manhãs.
À noite, a doente tinha de ficar sozinha. Mas, eram só umas horas e, no estado, de quase completa apatia, em que a mãe se encontrava, não fazia diferença!
O Gustavo devia estar mesmo a chegar.
Não lhe apetecia ir ver a mãe antes de ir para a festa de Passagem de Ano.
Aquele quadro de sombria quietude e profundo silêncio, deprimia-a dolorosamente!
Hesitou à porta mas, num rebate de consciência, entrou, devagarinho, no quarto, o vestido comprido a roçagar mansamente.
A mãe, pequeno vulto, mal perceptível, sob as roupas da cama, olhou-a fixamente, os olhos grandes e escuros, brilhantes de febre ou, talvez de lágrimas.
Ela era uma lufada de vida, de cor e de beleza naquele quarto, mergulhado na penumbra, que cheirava a doença, a uma incipiente dissolução e a uma infinita tristeza!
Ana sentiu uma forte opressão no peito, como se uma presença poderosa dominasse, invisível e destruidora e acentuasse, malévola, o cheiro insidioso e fétido de decadência e de podridão.
Meio-agoniada, Ana levou, num gesto brusco, a mão perfumada ao nariz e a jarra esguia, pousada na mesinha de cabeceira, virou-se, a rosa branca que lá pusera essa manhã, caiu, algumas pétalas soltaram-se e a água ainda a gotejar, ía tornando maior a pocinha cristalina, que se formara, no chão.
Ana assustou-se, estremeceu e, num arrepio, recuou.
“Até logo, Mãe!”
E, sem tocar ou beijar o rosto branco e esquálido, saiu do quarto, quase a correr, porque não podia suportar a fixidez daqueles olhos grandes, escuros, misteriosos que lhe atravessavam a alma, como uma súplica, como uma despedida ou... como uma acusação!
E, porque já estava de saída, Ana não viu o movimento ténue, muito ténue da mão descarnada da mãe, como que a querer tocá-la ou prender-lhe o vestido, nem viu os seus lábios tentarem, angustiados, dizer o nome dela, nem viu as duas lágrimas grandes, grossas, como punhos, que escorreram daqueles olhos grandes e escuros e se perderam, desoladas, na almofada!
Ana também não a viu abrir a boca, no desesperado espasmo da falta de ar, nem ouviu o seu leve estertor, tão leve, como um adejar de pássaro aflito, nem viu o pânico estampado no rosto desfigurado da mãe, a enfrentar, na mais profunda solidão, o supremo mistério da morte!
Gustavo deu-lhe um toque para o telemóvel.
Ela aconchegou-se com um arrepio, no casaco de peles e correu ao encontro dele, como se fugisse da mãe, daquela agonia lenta e, talvez também, de si própria, com duas pétalas da rosa branca, ainda presas na orla do vestido, mas que acabaram por cair, desamparadas, na carpete da entrada, como lágrimas de adeus!
Egoísmo/ Indiferença (Pecado Mortal)
MC
1 comentário:
Que história triste e tão bem escrita
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