quinta-feira, 11 de junho de 2009

Lembro-me

A importância da comida na minha infância

Lembro-me de, na minha infância, a comida não ter, realmente, importância e as refeições serem, muitas vezes, um sacrifício.

Lembro-me de muito pequenina ainda, ter estado doente, não ter apetite mas, ser necessário que me curasse o mais rapidamente possível para poder embarcar para África e de o meu Pai me levar a passear e entrar em três ou quatro confeitarias, onde eu bebia um bocadinho de leite, em cada uma delas, e só ir para casa quando ele calculava que eu já tinha bebido um copo cheio.

Lembro-me de não gostar de sopa e quando todos acabavam o segundo prato, eu ainda estar com a sopa, à minha frente, a desafiar-me, maldosa, já fria e com uma crosta leve e desagradável de caldo coalhado!

Lembro-me do pirão, fuba, amassada com um pouco de água, na pedra, e do peixe seco, que a nossa lavadeira preparava com óleo de palma, extraído do dendém, e que eu adorava comer, como ela, com as mãos, as minhas pequeninas e sujas , às escondidas de todos. Felizmente, não existia a ASAE.

Lembro-me, do prazer imenso e da excitaçãozinha manhosa daquela secreta transgressão, a todas as regras de casa.

Lembro-me das magníficas muambas de galinha ou de peixe, com muitos mariscos mas que nunca me sabiam tão bem como o peixe seco e o pirão, amassado na pedra, da Averina.
Lembro-me das batatas doces que ela nunca se esquecia de assar para mim e nunca mais comi outras, tão suaves e saborosas.

Lembro-me de me lambuzar, consoladamente, com as mangas doces, carnudas, quase sensuais no aspecto e no gosto, que nunca se comiam à mesa porque não se deviam cortar com a faca mas, tirada a casca, saboreavam-se com os dentes bem enterrados no fruto, a polpa a desfazer-se na boca e o sumo espesso a escorrer, atrevido, pelo queixo abaixo e a perder-se, amarelo, no bibe branco. O caroço descarnado e róseo, ficava, depois, cheio de fios, como um sol, oblongo e radiante.

Lembro-me da delicada fruta pinha, a minha preferida, do perfumado abacaxi, do macio mamão, da doce e rosada papaia, dos exóticos maracujás, e das deliciosas goiabas.

Lembro-me de, no colégio, chamarmos “goiaba madura” à Madre Superiora, mas nunca percebi porquê. Eu, francamente, achei-a sempre mais parecida com uma suculenta papaia.

Lembro-me do Faustino, religioso convicto a quem eu dava os meus “santinhos” mais bonitos, para me deixar comer as batatas fininhas e estaladiças que ele ía, incessantemente, fritando para o jantar.

Lembro-me da minha satisfação por, com essa pequena, mas gostosa chantagenzinha, transgredir, mesmo só um bocadinho, a ordem, em casa.

Lembro-me do Chipeco, que me conhecia desde o berço e tinha chorado amargamente a morte da minha mãe, me levar, de vez em quando e certamente em memória dela,
ovos das galinhas que a mulher criava na sanzala e um pão de forma branco, macio e fofo, com sabor a ternura, um luxo a que ele próprio não se permitia, porque me achava magrinha e não queria que eu adoecesse, como tinha adoecido, a sua senhora dos olhos claros.

Lembro-me da minha eterna repulsa por ovos e por doces conventuais e de, um dia, à sobremesa de um almoço formal e elegante, serem servidos uns majestosos “papos de anjo”, verdadeira orgia de gemas de ovo e de açúcar, e só a atenção e a encantadora diplomacia do meu Pai, para com a dona da casa, me terem salvo da aflição de ter de comer uma daquelas bolas amarelas e pastosas, a nadar, petulante, numa calda fortemente açucarada.

Lembro-me da quissangua, o xarope, feito com as cascas e o centro do abacaxi, que se bebia dissolvido em água fresca, dos refrescos da Jomba, do creme-soda e do refrigerante de morango, ambos da Canada Dry, que eu gostava de beber, serenamente, ao fim da tarde.

Lembro-me do horror que era descascar laranjas com o garfo e a faca, sem perder a pose e sem o fruto, redondo e matreiro, fugir, aos saltos, do prato e rebolar, rebolar, imparável, pela mesa fora.

Lembro-me do bolo de côco que fiz, um dia, seguindo uma receita da revista brasileira, “ O cruzeiro” e de o meu Pai gostou tanto, que ficou baptizado com o nome de “O bolo do Pai”. Em casa, só eu o fazia porque não dei a receita a ninguém.

Lembro-me de não me apetecer comer, a meio da manhã, o lanche que levava para o colégio e deixá-lo escondido dentro da carteira, até que as freiras descobriram a minha farta despensa de fatias de bolo e de pães secos, duros e bolorentos e de o meu pai ter ficado aterrado com a ideia de a sua menina estar, manhãs inteiras, sem comer nada.

Lembro-me de, desde então, ter começado a dar o lanche aos filhos das lavadeiras do colégio que criaram um “roulement”, muito deles, e de eu me sentir muito contente comigo própria, pela minha astúcia e, sobretudo, por ter descoberto uma solução, fantástica e absolutamente inócua, para não ter de comer, sem me apetecer.

Lembro-me da minha deliciosa despreocupação e maravilhosa serenidade quando lia, escrevia ou ouvia música, na varanda sombreada pela luxuriante buganvília roxa, enquanto ía comendo os “areados” e os “digestivos”, feitos em casa.

Lembro-me de nunca me ter lembrado do flagelo da fome e da pobreza mais extrema, na “minha" África, por não ser, então, uma terra devastada, submersa num mar amargo e pútrido de sofrimento, de guerra e de morte mas, ao contrário, ser uma terra abençoada, rica, e farta para todos e de eu, na minha inocência, partir do princípio que era assim, em todos os cantos mundo e de que, assim iria ser, para sempre!

Lembro-me da noite em que eu e o meu irmão resolvemos fazer um bolo de chocolate que ficou muito bonito, tufado e apetitoso e depois, para completar aquela obra de arte, termos decidido cobri-lo com chantilly. A minha receita, para a cobertura, era bater, energicamente, manteiga com açúcar.

Lembro-me de nunca termos conseguido fazer o chantilly, a cozinha ter ficado num tremendo caos, o bolo ter continuado castanho, depois de um desperdício atroz de energia, de manteiga e de açúcar e, de no dia seguinte, parecermos dois “zombies”, enjoados e meio-doentes, por tanto termos provado a mistura.
Mas, como nos divertimos, nessa noite, enquanto todos dormiam!

Lembro-me de, dois dias antes do meu irmão falecer, termos recordado, as mãos esguias e emaciadas dele, presas nas nas minhas, essa noite de travessura, de caos na cozinha, de risos, de chocolate, de manteiga e de açúcar e de ter sido essa, a última vez, que o brilho dos seus olhos e a doçura do seu sorriso encheram de luz, todos os recantos do meu coração.

Nota: Este texto foi, humildemente, escrito ao jeito do livro “ I remember” de Joe Brainard, de 1970, uma pequena mas encantadora jóia literária, em termos de originalidade.

MC

Sem comentários: